No começo a gente desconfiava. Com o tempo virou certeza. Quando escutávamos o rác,réc, rác, réc, da colher raspando o fundo da panela de ferro que cozinhava o arroz, sabíamos que nossa mãe estava tirando o arroz queimado, aliás, torrado, para fazer capitão. Aquele bolo de arroz feito com a mão fechada, cheiroso, crocante, gostoso que ela nos dava antes do almoço, antes de esfriar e ficar mucho.
Largávamos tudo e saíamos numa carreira só pra ganhar o primeiro bocado. Na boca. Nos empurrávamos em torno dela que, sorrindo, já me colocava no final da fila. “Te aquieta, Osmar! Tú é o mais velho, tem que dá o exemplo! Primeiro os mais novos, espera tua vez”. E, com uma bacia de arroz queimado no colo, ia fazendo os fantásticos capitães e dando pras quatro meninas. E depois, pros três meninos. Por fim, a minha vez. Lógico que eu estava emburrado. Até pelo medo de não sobrar pra mim. Mas ela dividia direitinho. Sorria, me abraçava, falava coisas gostosas e pronto! Éramos felizes!
Em várias ocasiões, vivíamos situações extremas. Passávamos da abundância para a necessidade. Meu pai viajava muito por conta do seu trabalho de fiscal do governo numa região de vários municípios. Assim, suas previsões de retorno costumava falhar. Embora deixasse a casa abastecida, dinheiro com mamãe e crédito aberto, às vezes demorava tanto que nem se sabia por onde andava. Os recursos se esgotavam.
Nessas ocasiões, minha mãe fazia o que podia. Evitava buscar socorro na casa de seus pais, meus avós Abdon e Salomé. Uma casa sempre farta, encravada no vila São Miguel. Analfabeta, dona Zuleide só sabia cuidar dos serviços de casa, dos filhos e do marido. E dos serviços da roça, onde fora criada. Assim, se oferecia para colher ou plantar para um ou lavar e passar para outro. Ou ia quebrar coco babaçu nas matas. Mas fome não deixava seus filhos passar. Não tinha vergonha e nem humilhação. Enfrentava as necessidades com dignidade, sem lamento, sem falar para ninguém.
Quando seu Jonas chegava, tudo voltava ao normal. A família toda ia para as missas de domingo. Bem vestidos, engomados, cheirosos. Noutras vezes, eles iam para os bailes de carnaval e chegavam trazendo frascos de rodó(lança perfume) que, certamente, juntavam no salão. Pela manhã, nos davam para brincar. Quando a gente apertava a trava, saia um cheiro bom. E fazíamos nossa festa de carnaval. Era uma farra!
Nas ausências prolongadas de nosso pai, víamos nossa mãe triste, chorando. Sentada na cozinha, cabelão preto e longo derramado sobre o rosto escondendo as lágrimas. A gente a abraçava e ela se acalmava. Eu a achava linda, parecida com Nossa Senhora. Quando na missa botava o véu e vinha caminhando de cabeça baixa, as mãos junto ao peito após a comunhão, ficava igualzinha a Nossa Senhora de Fátima. Eu pensava: será que a minha mãe é santa?
Hoje olho a Joyce,minha mulher, cuidando dos dois filhos. Uma moça adulta e um adolescente de 13 anos. Tem hora que é uma brabeza desconcertante. Minha mãe também era braba. Mas tem momentos em que derrama doçura para Caiure e Arthur Felipe. Parece cuidar de crianças. Só que com Facebook , redes sociais e internet, os jovens de hoje não têm a inocência dos jovens do meu tempo. Mas para as mães, os filhos sempre são crianças inocentes. Nesses momentos a Joyce, também, parece com Nossa Senhora. Mesmo sem capitão de arroz queimado. Amo essas mães e todas, nelas.
OsmarSilva – Jornalista – sr.osmarsilva@gmail.com