Com a ascensão de Evo Morales ao poder em 2006, a organização dos trabalhadores e dos grupos subalternos da Bolívia ganha mais força e autonomia. Diante do fortalecimento das classes menos favorecidas, o projeto oligárquico boliviano sente-se ameaçado frente à adoção de políticas públicas implantadas pelo governo federal, que decididamente começava a desenvolver ações voltadas para o processo de consolidação de reforma agrária naquele país.
O primeiro presidente indígena da Bolívia passou a desconhecer projetos neoliberais que visavam tão somente atender aos interesses oligárquicos e passou a comandar um governo de massas, objetivando reverter uma história de praticamente cinco séculos de dominação e exploração.
Com Morales os programas de nacionalização e reforma agrária tornam-se essencialmente prioritários, fatores que contribuíram para uma reação imediata e violenta da classe dominante. Indígenas e campesinos começaram a adquirir autonomia, e através de uma forte organização democrática e popular, passaram a conquistar importantes direitos sociais na luta pela terra.
Políticos de direita também se organizam e imediatamente criam o que ficou conhecido como a “meia lua”, um movimento que reuniu os Departamentos mais ricos da Bolívia: Jarija, Santa Cruz, Beni, Chuquisaca e Pando. O Departamento de Pando, parte integrante da Amazônia boliviana é o primeiro a se rebelar contra o Governo Federal. O governador de Pando, Leopoldo Fernandez, liderava o movimento da “meia lua” naquele Departamento e reivindicava juntamente com os demais Departamentos, a tão almejada autonomia departamental. Partidários ligados ao movimento AL socialismo (MAS) e defensores da política de reforma agrária do governo Evo Morales, marcharam em 2008 rumo à cidade de Cobija, capital de Pando, para exigir a renúncia de Leopoldo Fernandez que reage com Extrema violência contra os campesinos que seguiam na marcha pró - Evo Morales.
Vários campesinos foram mortos na chacina que ficou conhecida como o massacre de porvenir. O Governo Federal interveio, decretou Estado de Sítio no Departamento de Pando e prendeu o governador Leopoldo Fernandez, conseguindo assim neutralizar o avanço das forças dos autonomistas oligárquicos e restabelecer a ordem na República Boliviana.
O movimento de campesinos cresceu e fortaleceu-se ainda mais na Bolívia, fazendo com que suas conquistas se estendessem até a fronteira com o Brasil, chegando inclusive ao Rio Mamu, que faz parte da Amazônia pandina boliviana. A partir de 2007 os zafreros e campesinos começaram sua marcha – provenientes principalmente de Riberalta – com destino aos seringais do Rio Mamu – habitado na sua grande maioria por seringueiros brasileiros – objetivando a expulsão dos nossos nacionais e o consequente assentamento nesta área de fronteira.
No final de 2007 e início de 2008 a situação agravou-se de forma bastante violenta. O movimento campesino era liderado por Iver Manguayo Amutary, que comandava um grupo paramilitar, e de posse de armamentos pesados passou a ameaçar de morte os seringueiros brasileiros, caso insistissem em permanecer na área de abrangência do Rio Mamu.
A convivência no Rio Mamu, entre brasileiros e bolivianos, antes da eclosão do conflito, era de muita paz e harmonia. A luta pela terra na região de fronteira foi comandada por campesinos que desconheciam totalmente a cultura dos seringueiros, quer sejam brasileiros, quer sejam bolivianos, o fato é que a maioria dos zafreros campesinos adentrou no Rio Mamu através de uma estrada vicinal de aproximadamente 200 km de extensão aberta por madeireiros da região de Riberalta, objetivando fazer uma ligação por terra, entre às margens deste rio até a referida cidade. Por esta estrada eram transportadas grandes quantidades de madeira, extraídas de forma ilegal, por empresas estabelecidas principalmente em Riberalta, que também financiavam a extração de castanha.
O movimento de expulsão de brasileiros deu-se durante todo o trajeto que percorre o Rio Mamu, desde a sua foz no município de Santos Mercado, até a sua nascente no município de Santa Rosa Del Abuná.
Em janeiro de 2008, o seringueiro Francisco de Souza Queiroz, conhecido por França Lima, denunciou a invasão de um grupo de campesinos armados na sua casa. O seringueiro resolveu escrever uma carta e enviar a Extrema denunciando o fato acontecido. Na carta escrita por ele, o mesmo relata que no dia nove de janeiro de 2008, chegaram mais de trinta bolivianos armados, entraram em sua casa às dezoito horas e vinte e cinco minutos e deram um prazo de três dias para que a família desocupasse a casa e o seringal, e fossem embora para o Brasil. Na residência invadida, segundo França, só se encontrava sua esposa, a filha e o genro com outra criança e um trabalhador que estava com malária, e proibido de viajar por ordem de um grupo de bolivianos fortemente armados.
O seringueiro França estava em Extrema onde teria vindo comprar algumas mercadorias; Sabendo da notícia foi tentar resgatar sua família, mas quando chegou à ponte – local onde os campesinos se reuniam – o seringueiro brasileiro foi impedido de passar e mandaram-no voltar. Mateiro e conhecedor antigo da região, França entrou na mata, percorreu vários varadouros, saiu próximo ao município da Acrelândia no Estado do Acre, retornou por outro varadouro e finalmente conseguiu chegar até o seringal “Providência”, do qual era dono. Chegando a casa, conseguiu organizar o pouco de pertences que possuía e partiu de volta ao Brasil e desta feita pelo próprio Rio Mamu. Ao chegar à mesma ponte, três dias depois, de barco e trazendo a família, os campesinos queriam de todas as maneiras saber como ele tinha passado por lá, sem que eles o tivessem visto, e o seringueiro França respondeu que tinha “varado a mata”. De volta ao seu país de origem, França disse que vai começar tudo de novo, só que agora aqui no Brasil.
Ataques e ameaças a outros seringueiros passaram a ser constantes. O seringueiro Leonardo Piedade Fragoso, conhecido por “Belo”, assim como todos os seringueiros brasileiros residentes ao longo do Rio Mamu-, também passou por grandes constrangimentos e humilhações. Morador há 42 anos no seringal Primavera, Belo conseguiu montar um pequeno comércio no distrito de Extrema, comprou um batelão e como regatão passou a negociar mercadoria com os demais seringueiros residentes ao longo do Rio Mamu. Leonardo Piedade diz ter sido muito humilhado pelos zafreros. Foi impedido de navegar no Rio Mamu. Expulso do seringal Primavera continuou apenas a exercer a atividade normal de pequeno comerciante. “Belo” conta que o que mais “lhe doeu”, foi ouvir um campesino boliviano armado lhe falar: “Não faço charque de você, porque carne de negro amarga”. O preconceito inaceitável fez com que Leonardo Piedade ficasse totalmente desiludido com os seringais da Amazônia pandina boliviana.
O seringueiro Manoel Aguiar, dono do seringal Pedro Porto, enfrentou momentos difíceis juntamente com sua família, que foi pego de surpresa em sua própria casa por cerca de sessenta bolivianos campesinos armados e ameaçando a todos de morte, caso não desocupassem imediatamente o seu seringal.
Aguiar conta que era chamado constantemente de “brasileirito corudo” pelos invasores. Segundo o seringueiro eles já foram chegando e cortando os punhos das redes de sua família e dos coletores de castanha que no momento estavam trabalhando em seu seringal. Ele diz que seus filhos queriam reagir, mas ele impediu, pois o grupo deles era muito maior e certamente caso houvesse uma reação, toda sua família morreria, e preferiu ficar ouvindo as humilhações, tendo que obedecer ao prazo de três dias para desocupar as terras.
Não havendo alternativa para o seringueiro Manoel Aguiar, ele abandonou o seu velho seringal e ao lado da família deixou o Rio Mamu e retornou ao seu país de origem “Com as mãos abanando”, disse ele. O golpe foi grande, Aguiar deixou uma vida de trabalho para traz. Diz ter passado três meses sem beber e sem comer e entrou numa depressão profunda. Aguiar perdeu 18 burros, 300 cabeças de galinha, 36 mil covas de roça e o velho seringal “Pedro Porto”. Ele lamenta até hoje essa perca irreparável.
Hoje Aguiar vive doente e constantemente vai à Porto Velho fazer hemodiálise. Ele precisa fazer um transplante de rim, mas os filhos que poderiam ser doadores também sofrem da mesma doença. Desde o inicio de 2008 quando foi expulso pelos zafreros campesinos de suas terras, Aguiar não voltou mais ao seu seringal. Os bolivianos que tomaram posse das terras também não resistiram, e por falta de apoio do governo boliviano, tiveram que abandonar o seringal Pedro Porto. O seringal atualmente encontra-se totalmente abandonado, restando nele apenas os rastros de destruição.
O seringueiro José Mendonça foi outra vítima de violência cometida por campesinos armados no Departamento de Pando. Mendonça é natural do Estado do Acre, mas reside desde criança no Rio Mamu, quando foi para a região boliviana acompanhado do pai e da mãe. Mendonça tem hoje 58 anos e quando tinha apenas sete anos de idade perdeu sua mãe no Rio Mamu. Sua mãe encontra-se sepultada no seringal “Barro Alto,” e seu pai faz onze anos que faleceu em Porto Velho.
Depois de muitos anos morando no seringal “Barro Alto”, Mendonça foi viver no seringal “Santa Rita”, numa região mais próxima da foz do Rio Mamu. O pesadelo não tardou a chegar, e os campesinos invadiram sua propriedade, dizendo que ele não era mais dono de nada. Perdeu a roça, castanha, animais, a casa e a terra. Desesperado Mendonça resolveu voltar a Extrema, e quando vinha descendo o rio, só encontrava lamentações dos amigos seringueiros que também estavam decididos a retornarem à pátria verde-amarela.
O silêncio tomou conta dos seringueiros brasileiros, ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo. O seringueiro Mendonça procura ajuda em Extrema para denunciar as atrocidades cometidas contra seu povo, e encontra apoio do projeto Ética e cidadania da escola estadual Jayme Peixoto de Alencar. A partir dali começa um novo capítulo da história dos seringueiros brasivianos do Rio Mamu. A coordenação do projeto Ética e cidadania solicita apoio do Consulado Brasileiro de Cobija e da Embaixada Brasileira em La Paz. Estava dada a largada para as negociações diplomáticas e para a instalação de um processo de paz na região pandina boliviana.
O projeto Ética e cidadania destacou-se nesta empreitada conflituosa na região de fronteira Brasil/Bolívia, procurando de forma solidária fazer valer a voz da diplomacia e atualmente os nacionais brasileiros que foram expulsos do Rio Mamu continuam acreditando no sonho da terra prometida.