É complexo e pode ter sido usado por dezenas de fazendeiros do Cone Sul e de toda o Estado de Rondônia o esquema para “esquentar” documentos de terras públicas na região. Ontem, a Polícia Federal já atingiu o primeiro alvo da investigação, que é acompanhada pelo Ministério Público Federal.
Segundo apurou o Folha do Sul Online junto a advogados, além dos próprios fazendeiros, intermediários, laranjas e contadores participavam do crime, cometido com a ajuda de servidores do INCRA, responsáveis por fraudar a documentação que permitiu o registro das terras em nome dos atuais donos.
COMO FUNCIONAVA
O nó da questão é a titulação de terras. Como se sabe bem, é muito dificultosa a transferência de propriedades da União para os particulares tendo em vista que os critérios da lei são de difícil ocorrência e a área a ser transferida é “pequena” segundo os interesses de grandes proprietários (cerca de 2 mil hectares por “CPF”).
Aí é começa a trama. Necessitando da propriedade em seu nome para conseguir financiamento junto a bancos, os proprietários de terras conseguiram achar um jeito para conseguir a matrícula, mas essa modalidade encontrada, segundo apurou a PF, não é lícita.
O esquema começa com o encontro de “CPF” de laranjas para utilizar como sendo os donos da terra e, no INCRA, consegue-se o que se denomina “certidão de inteiro teor” em nome desses mesmos laranjas. Esse documento, sem nenhuma base regular, é expedido e serve para transferir a terra que é da União para o particular.
Utilizando vários laranjas, os proprietários juntam grandes glebas e, depois, recompram o que já era seu das pessoas que foram utilizadas no caminho.
É um método simples, mas que requer a participação de várias pessoas, entre elas servidores públicos e “despachantes”, que são aquelas que acham os CPFs de laranjas e, em geral, fazem toda a parte burocrática.
O problema é que muitas pessoas que participavam do esquema não têm a menor capacidade de adquirir nenhum tipo de propriedade, já que moram em casas simples e vivem em dificuldades financeiras. Será fácil demonstrar a manipulação dos documentos usando a própria condição de miserabilidade dos investigados.
Todo esse procedimento ilegal tinha a participação de servidores do INCRA, que também estão sendo investigados. Os nomes desses funcionários públicos suspeitos, que atuavam em várias cidades, estão sendo mantidos em sigilo.
VEM MAIS POR AÍ
As investigações da Polícia Federal podem atingir duramente o agronegócio no Cone Sul, pois mira numa prática que garantiu a “regularização” de dezenas de propriedades rurais na região.
Com os bens bloqueados, os fazendeiros que eventualmente forem apanhados no esquema não terão como financiar suas lavouras. Se isso se confirmar, serão milhares de empregos perdidos durante todo o tempo que durar o confisco das terras.
No caso já em andamento, o juiz federal de Vilhena bloqueou o acesso a financiamentos pela terra que foi sequestrada e impôs quantia ainda não conhecida a título de “arrendamento”, caso quem esteja nela queira continuar exercendo a atividade agropecuária.
Parece que a PF conseguiu comprovar que a terra é mesmo da União e convenceu o magistrado de que, sendo assim, é necessário que o fazendeiro pague desde já pelo uso da área.
USUCAPIÃO NÃO SE APLICA
Segundo pessoas ligadas à advocacia que atuam no caso, se avalia que não há como se sustentar na justiça as eventuais tentativas de manter as terras através de usucapião, instrumento jurídico que permite à pessoa adquirir a propriedade de um bem móvel ou imóvel em virtude do tempo de ocupação.
"Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião", diz a legislação sobre o tema.
DRAMA SOCIAL
A FOLHA procurou um antigo servidor do INCRA que mora em Vilhena, que avaliou ser muito perigosa essa operação da PF. Segundo ele, poucas grandes propriedades são tituladas de forma regular e o esquema teria sido amplamente utilizado em Vilhena com o enriquecimento visível de vários dos envolvidos.
Para esse servidor do INCRA, se a PF descobriu o modo e as pessoas envolvidas, o canal está aberto para colocar à luz todas as outras propriedades que vêm, de maneira correta ou não, produzindo e gerando empregos.
Mais que um caso de polícia, o clima é de susto, e para outras pessoas consultadas o próprio governador de Rondônia deveria vira estar hoje em Vilhena, porque se isso se alastrar a economia do Estado pode sofrer um grave baque.
Isso, no entanto, é resultado de anos de omissão governamental que foi empurrando com a barriga o problema de titulação de terras e praticamente obrigou as pessoas ao ilícito.
Mesmo que não explique o malfeito, o fato é nenhum programa do governo foi capaz de regularizar isso e a corrupção tomou o lugar o poder público.
A PF fez o seu trabalho e deve ser utilizada, inclusive, para explicar o caso de forma minuciosa para que as pessoas e as autoridades entendam como funciona o esquema e como se pode resolver esse que é um problema social.
São os políticos que, em último caso, nunca deram a importância devida ao tema e forçaram todos os participantes dessa tragédia a atuar.
A PF agiu e descobriu os detalhes do crime, e o que se aguarda daqui para frente não é a espera de novos alvos policiais, mas a atuação imediata de pessoas com entendimento e força política para resolução desse problema que se confunde com reforma agrária.