Eu descobri o livro “Mate-me por favor – Uma história sem censura do punk” em uma das viagens que fiz a São Paulo. Nas andanças, acabei entrando na Livraria Saraiva e vi uma edição com a capa laranja (que depois teve uma variante de capa verde) e esse título desgraçadamente lindo – que simulava um grafite numa parede. Como sou roqueiro raiz e tive a minha versão de estilo de vida punk – principalmente quando descobri os Ramones com 16 anos, através do disco “Rocket to Russia” (1977) –, obviamente comprei.
Publicado no Brasil em 1997 pela L&PM em uma edição única, foi depois republicado em dois volumes pela mesma editora, na sua coleção de livros de bolso. O livro é dividido em capítulos sui generis, reportando o início do que viria a ser o punk rock – seja como gênero musical, comportamento social ou estilo de vida, que ficou marcado pela rebeldia e, em sua variante mais radical, pela anarquia maledicente dos skinheads.
A obra é organizada e muito bem elaborada pelo historiador musical Legs McNeil e pela jornalista Gillian McCain, pois toda a narrativa e história são compostas por entrevistas de dezenas de figuras importantes do meio musical, jornalistas, artistas, groupies, produtores musicais, empresários e artistas variados, que constroem e dão sustentação às mais diversas versões dos criadores e criaturas que fundaram a pedra gênese do movimento pré-punk em 1967, nos subterrâneos do mainstream, inseridos nos meandros da realidade sadomasô urbana da banda Velvet Underground, depois mostrando como o glam rock e a blank generation foram fundamentais para a transformação mítica e revolucionária causada pelo punk em 1977, com Sex Pistols e The Clash.

O legal desse livro, que se constitui numa transcrição de história oral, é que as entrevistas, colocadas em ordem cronológica de acordo com o período que destaca, reúnem figuras emblemáticas da cena musical e artística, descrevendo fatos importantes sobre bandas de rock, artistas, músicos e produtores envolvidos não só com a música, mas com toda uma cena comportamental que moldava as pessoas, criando moda ou dissipando-a num estalo de dedos.
Não é surpresa a cena iniciar com a banda The Velvet Underground, em 1965, mostrando o início do grupo que tinha os músicos Lou Reed e John Cale como cabeças e que já possuía uma característica soturna, buscando uma forma de se firmar como artistas de relevância na cena musical.
Foram apadrinhados pelo revolucionário artista plástico Andy Warhol – o criador da pop art – e inseridos no seu ateliê, a Factory – o casulo de multiartistas envolvidos com dança, música, cinema, moda e arte urbana –, na cidade de Nova Iorque, em 1966.
A banda fazia uma música experimental, com um estilo único até então, misturando a batida do rock com um som inquietante e minimalista, em que as letras geralmente falavam de sexo sadomasoquista, drogas, ruas sujas, entre cafetões e prostitutas. Tudo avesso à moda da época, contrariando a cena popular que dava ênfase a grupos psicodélicos que ainda viviam em São Francisco ou na Califórnia, pregando o “amor livre”.
Todos os membros da banda se apresentavam vestidos de preto, com jaquetas pretas e óculos escuros. A antítese total do colorido hippie. Com exceção da cantora Nico, que foi uma imposição de Andy para produzir o primeiro disco da banda. Ela divide algumas faixas do álbum com Lou.
Com essa base, o Velvet foi empresariado e teve o seu primeiro disco, produzido por Andy, gravado e lançado em 1967 – o famoso disco da capa da banana, arte feita por ele.
Esse disco, que foi um fracasso de vendas e mal recebido na época, acabou se tornando o álbum de rock considerado o proto-punk, o minimalismo base em sua estrutura e que influenciou todo mundo envolvido com música alternativa.
A partir desse início, tendo como gênese o Velvet Underground, seus membros, principalmente Lou Reed, seriam figuras recorrentes citadas nas entrevistas ou em escândalos em casas noturnas. Em algum momento, sempre haverá uma citação.

O livro é fantástico por trazer as fontes de todas as entrevistas reunidas, realizadas em diversos períodos, muitas já publicadas ou divulgadas em programas de rádio, e também por incluir um glossário com os nomes de todos os entrevistados, indicando as bandas em que tocaram, os instrumentos e os discos de que participaram.
Na estrutura do livro, são muitos capítulos puxados por uma frase de efeito ou citação de algum entrevistado, destacando uma ou duas bandas por capítulo, ou ainda um artista isolado, mostrando seu auge, poder de influência e revolução sonora ou de moda comportamental – alguns desses grupos sucumbiram em autodestruição e outros estavam geralmente envolvidos em brigas e escândalos divulgados na mídia.
Nas entrevistas, as narrativas são relatadas com teor de informação e catarse pela cena musical que viviam, sem poupar detalhes violentos ou degenerativos. Se tínhamos casas noturnas – como o Max’s Kansas City – que serviam de palco para esses artistas inquietos que extrapolavam o bom senso, também tínhamos as pessoas que frequentavam esses lugares e que eram notórias, coadjuvantes ou protagonistas de muitas histórias.
Os integrantes do MC5 e dos Stooges, bandas de Detroit, estavam envolvidos com drogas, com alguns músicos se servindo do tráfico. Se mudaram para Nova Iorque, porque era onde estava abrindo portas para o estilo de música que propunham.
Vendiam e consumiam cocaína e heroína sem pudor algum. Eram comuns noitadas de bebedeiras após apresentações e shows, além dos envolvimentos com groupies (jovens fãs em busca de sexo com ídolos da música daquela época – quanto mais populares e marginais, mais atraentes eram para elas).
No capítulo dedicado ao vocalista dos Stooges, Iggy Pop, as aventuras musicais e pessoais dele são absurdamente surreais. Iggy, vindo de uma família abastada, preferiu a marginália dos ambientes pesados do rock que percorriam naquele período, sempre injetando heroína, consumindo ácido lisérgico, envolvido em brigas, morando em locais insalubres por causa da sujeira e protagonizando apresentações históricas que consolidaram sua fama de bad boy e o primeiro frontman de atitude punk da história do rock.
Iggy, grande fã do Velvet, não tinha amarras em suas apresentações, a ponto de vomitar no palco passando mal, tomar um banho de purpurina que quase o cegou, se cortar com cacos de vidro e usar saltos plataforma enquanto vestia apenas uma cueca. Para o início dos anos 70, Iggy estava muito à frente do seu tempo, provocando desejos em homens e mulheres.
Outros artistas do período também causaram impacto e surfaram essa onda de transformação radical na música, com a urgência do rock – um blues acelerado em batidas e apresentações bombásticas. Estavam aí o MC5, considerados brutais e exaltados pela crítica especializada como o futuro do rock, embora incapazes de lidar com a fama repentina. Havia também os criadores do glitter rock, levando para o palco a androginia iniciada por David Bowie em sua fase Ziggy Stardust: os New York Dolls, cujos integrantes se vestiam de mulheres, usavam roupas apertadas, saltos plataforma, maquiagem pesada, purpurina e perucas.
Esse período inicial dos anos 70 – pós Velvet Underground (a banda já havia acabado, com Lou Reed seguindo carreira solo) – é descrito como a base crucial para a influência que resultaria na formatação do punk rock.
Ao mostrar a importância de David Bowie, na época já um artista consagrado, o livro destaca como ele ficou fascinado com a cena musical de Nova Iorque e com a figura de Iggy Pop – tornando-se seu padrinho musical. Sua influência como catalisador foi enorme: produziu Iggy quando os Stooges acabaram, e sua presença na cena estimulou outros artistas.
Outro ponto importante no livro é o grande número de produtores musicais, promotores de eventos e jornalistas relatando suas versões de fatos que criaram míticas histórias envolvendo esses músicos. Praticamente todos, em algum momento, falharam ou acabaram caindo nos malefícios da fama repentina, o que gerou brigas ou cancelamentos de contratos milionários com gravadoras, que enxergaram a revolução musical dessa época, mas tinham que lidar com egos gigantescos.
É uma viagem musical que lida com muitas criaturas notívagas e que surpreende não só pela criação, mas também pela transformação de comportamento.
Os capítulos dedicados à poetisa e cantora Patti Smith, assim como o início das apresentações no bar CBGB’s – o berço musical de bandas seminais como Television, Ramones, Blondie e Talking Heads – são leituras prazerosas e muito bem descritas pelos pontos de vista dos músicos e produtores.
O capítulo dedicado aos Ramones é espetacular. Desde o início, com cada membro envolvido com o glitter rock, até a união para criar um som único, urgente e depois imitado pelos ingleses na formatação do punk rock britânico, influenciando bandas como Sex Pistols, The Clash, The Damned e Buzzcocks.
Joey, Johnny, Dee Dee e Marky Ramone criaram a fórmula básica dos três acordes necessários para uma música de dois minutos, que serviu de base para o punk rock. O modo como o livro descreve a recepção inicial da banda é fascinante: eram vistos com repulsa pela dita “precariedade” sonora de seus shows, que duravam no máximo de vinte a vinte e cinco minutos. Rapidamente, esse estilo se tornou essencial, e eles se transformaram em sucesso.
“Mate-me por favor” é um livro essencial para quem gosta de música, de rock, e também para quem se interessa por histórias de bastidores envolvendo ídolos. Mostra, sem pudor, como eles eram falhos e como alguns extrapolavam o bom senso do ridículo, manipulados pela exposição midiática da época e pela busca quase constante de se tornarem figuras notáveis, provocando alguma revolução.
Muitos conseguiram: gravaram discos, fizeram sucesso e se tornaram clássicos.
O grande achado, para mim, dessa obra é trazer à luz como o fim dos Beatles, da psicodelia e da fulgurante catarse provocada pela era hippie criaram um período de transformações nos anos 70 que moveram o mundo da música. Artistas e grupos criaram história e viveram seu ápice entre a marginália e a busca por um som que provocasse as pessoas, destruísse velhos pensamentos e apontasse para um futuro em que qualquer um pudesse ser conhecido, montar seu portfólio musical e se tornar uma referência.
É um livro incrível. Recomendo muito.