Ele faz parte das primeiras famílias nipônicas que chegaram a Porto Velho no pós-Guerra Mundial
Foto: Reprodução
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Shunsuke Tanabe, 74 anos, é sobrevivente de uma aventura singular: a descoberta de um novo mundo na Amazônia. Em 24 de maio de 1954 ele imigrou para Rondônia, junto de 66 famílias [412 pessoas], que deixaram para trás um Japão empobrecido e arrasado no período pós-guerra — encerrada em 1945, mas com o seu território ocupado e oprimido pelos Estados Unidos até 1952.
Tanabe veio acompanhado dos pais e duas irmãs mais novas para tentar a sorte no Ocidente. O pai de Tanabe, Nobumichi, havia sido soldado do exército japonês e foi um dos três sobreviventes entre cerca de 600 homens de um pelotão destacado para o exterior, ao sul do Pacífico, na Segunda Guerra Mundial. “O meu pai sofreu muito e não gostava de conversar sobre a guerra. Eu não sei detalhes dos conflitos que ele se envolveu; o que eu soube foi pela minha mãe”, discorre.
Tanabe vive em Porto Velho desde os 6 anos
Houve uma campanha do Governo Brasileiro com uma carta-chamada dirigida aos japoneses, convidando-os para virem para cá. “Minha família se inscreveu, foi aprovada e veio, com toda a coragem”. Para embarcar, os interessados precisavam ter certificado de bons antecedentes e boa saúde. Também passaram por um curso rápido sobre noções básicas dos usos e costumes do Brasil. O governador do território do Guaporé, Ênio Pinheiro, assinou, no Brasil, o contrato com o Consulado Japonês prevendo os benefícios oferecidos pelo Governo local e a contrapartida esperada dos imigrantes: produzir seringa.
Nascido na cidade de Kagoshima, em 1948, o menino embarcou aos aos seis anos rumo ao desconhecido no navio mercante Africa Maru, movido a vapor, no porto de Kobe, baía de Osaka, centro do Japão. Depois de 54 dias — “com excelente alimentação a bordo” [incluía carnes frescas, pois trouxeram bois vivos] e paradas épicas, incluindo nos Estados Unidos e na Venezuela [que estava em festa comemorando sua independência] chegaram ao porto de Belém (PA) e, de lá, fizeram a abalroação e 29 famílias seguiram a bordo do navio Tapajós para Porto Velho, capital do então Território Federal do Guaporé. Foram 16 dias de viagem nesse trecho. “Em Belém, as demais famílias seguiram para o estado do Amazonas e uma família, que viria para o Guaporé, se negou a sair do navio, achando tudo estranho. Voltou para o Japão. Chegaram a Porto Velho, 29 famílias, mas estavam selecionadas 30”, sublinha. Hoje, Tanabe e mais quatro pessoas são os remanescentes daquele grupo de 180 pessoas que chegaram à barranca do Rio Madeira.
O Governador do território, Ênio Pinheiro, e o Cônsul do Japão, em 1954 - Arquivo Luís Claro
Os desafios eram imensos quando da chegada dos orientais. Os desbravadores enfrentaram as intempéries amazônicas, as doenças tropicais, a cultura diferente e, principalmente, a dificuldade de comunicação e a luta pela sobrevivência. Eram quase todos agricultores, mas as técnicas e os produtos cultivados eram diferentes entre os dois países, além de a cidade de Porto Velho ser pequena e isolada — a rodovia só passaria a existir dali a seis anos.
Quando aportaram no cais do Madeira, em 22 de julho de 1954, não havia nenhuma autoridade à espera deles, pois era sábado e as repartições públicas não funcionavam. Nem mesmo sabiam, ao certo, onde seriam alojados. Só puderam desembarcar dois dias depois, uma segunda-feira. Muitos brasileiros observavam, curiosos, a movimentação dos asiáticos. Ficaram dormindo no barco, envoltos num misto de preocupação e de esperança. Eles tinham um instrutor e intérprete, Rokuen Uwamori, que fez o papel de diplomata da comitiva junto ao governo local. “Depois fomos levados de caminhão para onde é hoje o hospital das Irmãs Marcelinas; na época era um alojamento porque o hospital [construído, a princípio, para atender a leprosos] ainda não havia sido instalado, mas já tinha toda a estrutura, inclusive energia elétrica”, relata o pioneiro.
Trabalhadores na granja da colônia em 1974 - Foto: Hervé Théry
Logo as famílias foram instaladas pelo governo do território na Colônia Agrícola 13 de Setembro, onde chegaram a pé. A princípio, foi construído um barracão para abrigá-las e cada família passou a receber uma ajuda de custo do governo territorial no valor de 15 mil ienes mensais [equivalente a 600 reais atuais], durante dez meses. Paralelamente, foram loteados terrenos nas duas margens do Igarapé Bate-estaca. Eles tentaram — sem êxito — cultivar seringa, tendo buscado sementes em Jaci-Paraná e às margens do Rio Jamari; eram financiados pelo Banco da Amazônia para formar o seringal. No entanto, o 2º ciclo da borracha já havia, de fato, terminado e o produto perdido importância no mercado internacional. O jeito foi trabalhar com hortifrutigranjeiros e avicultura.
Foram eles os difusores de alguns produtos incomuns na Amazônia, a exemplo do pimentão, da couve-flor, da alface, da cenoura, da cebola e da berinjela. “Beradeiro [o apelido que se dá ao morador de Porto Velho] plantava quiabo, mandioca, maxixe e couve. Não conhecia muitos legumes que passamos a vender na feira. Berinjela eles chamavam de ‘banana de japonês’. Um brasileiro comprou dezenas de repolhos, redondos feito coco, e enterrou tudo pensando que aquilo ia germinar”, relembra, bem humorado. A introdução da criação de galinhas caipiras presas também é “arte” dos japoneses. “Isso contribuiu para a venda de ovos sempre frescos, diferentes de como eram até ali, sem um controle de qualidade, com muitos ovos chocos no mercado”. Outra novidade foi a hidroponia, “tecnologia que meu pai aprendeu e repassou”.
Com o passar do tempo, os japoneses se incorporaram à comunidade. Seus produtos de ótima qualidade eram muito apreciados, mas sofreram o revés da concorrência dos paulistas a partir da abertura da rodovia BR-29 (atual 364), em 1960.
Afora toda a problemática mencionada, não há notícias de preconceitos. Porto Velho sempre foi uma Torre de Babel e admitiu bem a convivência entre “estranhos”. Desde que a cidade começou a surgir, no entorno da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, serviu de morada para gente do mundo todo; é uma cidade de natureza multinacional e multiétnica. Todo mundo é estrangeiro nessas paragens. Ou, por outro prisma, ninguém é visto como forasteiro.
Os pais de Tanabe tiveram outros três filhos, estes genuinamente porto-velhenses, além dos que vieram do Japão. No geral, o que se pode dizer é que os japoneses e seus descendentes formaram uma colônia muito trabalhadora e honrada; trouxeram ainda mais pluralidade para Rondônia. Inclusive, Tanabe recebeu diversas condecorações, entre elas a de Cidadão Honorário de Porto Velho.
A Colônia 13 de Setembro ainda existe. No local que contribuiu na formação do hibridismo cultural da região há vários moradores. Existe também um cemitério onde repousam alguns dos heróis que cruzaram um oceano para fazer história na Amazônia, formando outras famílias que contribuem com diversas áreas da sociedade.
O nome da colônia refere-se à data mais importante, na época: foi em 13 de setembro de 1943 que Getúlio Vargas criou o Território Federal do Guaporé, nomeando o primeiro governador do território: Aluízio Ferreira, militar e discípulo de Marechal Rondon.
Nem todos os japoneses e descendentes que moram em Porto Velho são originários da colônia. Principalmente em decorrência do advento da BR-364, muitos japoneses que moravam no Sul e Sudeste do Brasil começaram a imigrar para Rondônia. “Com o resultado das vendas das terras em outros estados, ele vinham para cá e conseguiam adquirir verdadeiros latifúndios, porque aqui as terras eram bem mais baratas”, destaca o entrevistado. Também começaram a chegar os jovens nikkeis em busca de espaço no serviço público ou na condição de profissionais liberais.
PRECURSOR NO ENSINO DA LÍNGUA JAPONESA
Primogênito e sempre comprometido com o trabalho na granja para ajudar os pais e irmãos, Tanabe pôde estudar apenas até o 6º ano do ensino fundamental. Mesmo com a baixa escolaridade e com muito esforço, tornou-se professor de língua japonesa. Conta que a missão começou “por acaso”, em 1996.
“Havia um médico que era meu amigo. Ele fez doutorado no Japão e manifestou interesse de criarmos, aqui em Porto Velho, uma associação nipo-brasileira. Foi neste meio que a demanda [pelo conhecimento da língua] surgiu. Eu resisti, alegando que sabia pouco. Mas, acabei virando professor. Eu frequentei escola no Japão durante menos de um ano e não tenho conhecimento didático. O que eu sabia da língua, aprendi com meus pais, a gente só falava em japonês na minha casa”, relata Tanabe, que já ministrou aulas para centenas de pessoas — descendentes ou não de japoneses — nestas quase três décadas de atividade, que ele desenvolve em paralelo ao trabalho de agente imobiliário.
O professor particular também foi impulsionado pela onda dos mangás. Havia muito interesse dos jovens, já nos anos 2000, de saber direto da fonte o que os quadrinhos diziam. E, assim, Tanabe tornou-se uma referência como consultor e tradutor, num tempo em que as traduções virtuais não eram comuns e nem tão acessíveis.
Começou suas aulas — “eu ensinava falas bem básicas” — para dez crianças na garagem de casa. Contudo, surgiu a surpresa: alguns dos pais das crianças começaram a acompanhá-las às aulas e faziam perguntas mais complexas como conjugação de verbos, empregos e regras de adjetivos, substantivos… “O jeito foi eu lutar para aprender. Adquiri livros da Fonomag [livraria de São Paulo] e estudei gramática japonesa”, afirma, dando mostra da sua resiliência e disciplina, predicados comuns ao seu povo que fez o país arruinado pela guerra uma nova potência mundial — é o segundo PIB de todo o planeta.
O trabalho do professor foi reconhecido pela JICA (Agência de Cooperação Internacional do Japão) que começou a enviar professores japoneses para somar com Tanabe. Ele recebia voluntários que ficavam até dois anos dando suas contribuições. Uma desses voluntários permaneceu em Porto Velho e, com o apoio do velho professor, está estabelecida com seu curso de japonês, inclusive no Nikkey Clube.
Tanabe formou muitos professores que dão sequência ao seu trabalho. “Ultimamente, estou parado com as aulas por conta de uma série de comorbidades. Tive câncer, sou colostomizado e com problemas cardíacos”, esclarece o decano, casado e pai de três filhas formadas e que foi homenageado pelo Consulado Geral do Japão em Manaus pelas contribuições à cultura e à educação nipônica na região Norte.
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