SOLDADOS DA BORRACHA - A propaganda do DIP e o pintor suíço que ajudou a persuadir nordestinos a virem para a Amazônia

Uma visão sobre os métodos “publicitários” e discursos de persuasão do DIP – Departamento de Propaganda e Imprensa do governo Getúlio Vargas para trazer o nordestino á Amazônia como “soldado da borracha” é dissecado pelo professor Marquelino Santana, chef

SOLDADOS DA BORRACHA - A propaganda do DIP e o pintor suíço que ajudou a persuadir nordestinos a virem para a Amazônia

Foto: Divulgação

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Uma visão sobre os métodos “publicitários” e discursos de persuasão do DIP – Departamento de Propaganda e Imprensa do governo Getúlio Vargas para trazer o nordestino á Amazônia como “soldado da borracha” é dissecado pelo professor Marquelino Santana, chefe do núcleo de ensino da Ponta do Abunã em Extrema de Rondônia.

Uma analise semiótica das peças produzidas pelo pintor suíço Jean Pierre Chabloz, contratado pelo “Estado Novo” para ilustrar as campanhas também está contida neste artigo. Uma viagem no tempo e motivos que levaram cerca de 50.000 brasileiros a se embrenharem na selva em “defesa da pátria”. Ou... em busca de melhores condições de vida que a seca proporcionava, uma questão de sobrevivência. Um texto recomendado pelo Rondoniaovivo, que o publica com exclusividade.

A linguagem persuasiva e a figura do soldado da borrachaFrancisco Marquelino Santana.  
O estigma da seca sempre castigou o modo de vida do sertanejo que nunca poupou esforços para sobreviver na região do semi-árido nordestino. Ainda cedo da madrugada, o caboclo da roça se levanta e acompanhado da mulher e dos filhos mais velhos, deixa a velha casa de Taipa, leva um pouco de farinha e um pedaço de rapadura preta, e uma pequena cabaça d’água que fica alojada na sombra do Juazeiro.
Sob o sol ardente segura o cabo da chibanca e vai arrancar o “toco” da jurema preta num pedaço de terra arrendado do patrão. Depois de brocar, começa a rezar e a depositar suas últimas esperanças à espera de uma chuva que venha propiciar o plantio de arroz e feijão, e nada mais do que isso, pois seria a alimentação básica para manter a família de pé e continuar na luta pela vida. O complemento alimentar, a própria caatinga se destinava a oferecer: Teiú (Tiú), preá, camaleão e demais animais de pequeno porte, dos quais o caboclo se enchia de alegria ao saborear a carne.
As secas periódicas obrigavam famílias inteiras a percorrerem léguas de estradas em busca da preciosa água. A mulher transformava um velho pedaço de pano (molambo) em um pequeno suporte oval denominado rodilha, - ou “rudia” na linguagem popular do sertão - para receber um “pote de barro” em sua cabeça. Já outros em “melhores condições”, colocavam um cabresto num jumento, depois os “cambitos” e duas ancoretas de madeira para fazer o transporte de água até seu destino final. Desta forma o homem simples do sertão vai enfrentando os desafios na natureza com suas cotidianas adversidades, e vítima da “indústria da seca”, marcha valentemente chorando as mágoas de um sistema político-econômico caduco e atrofiado, que o condena às margens da sociedade capitalista. Outras grandes secas, porém, continuaram a dizimar a população nordestina. As secas de 1915 e 1942 deixaram rastros de miséria e desolação. 
 
Neste momento entra em cena o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, órgão responsável pelas propagandas oficiais do Estado Novo. O DIP comandaria uma intensa campanha ideológica que visava persuadir os flagelados da seca a marcharem rumo a Amazônia brasileira e a conquistarem o novo “El Dorado”.
Estava assim dada a largada para a grande “marcha para o oeste” do Estado Novo. O discurso dominante precisava entrar em cada lar, convencendo, iludindo, conquistando e persuadindo famílias inteiras a migrarem para “um novo mundo” que ofereça conforto e dignidade. Desta forma podemos assim dizer que a linguagem persuasiva durante o Estado Novo exerceu poderosa influência no senso comum do sertanejo. Agora conformados, a Amazônia iria receber a segunda grande leva de migrantes nordestinos e assim promover no até então “desconhecido mundo”, a tão dogmática batalha da borracha.
Persuadidos e convencidos a embrenharem-se no desconhecido, homens, mulheres e crianças estavam agora determinados a prestarem “seu amor” à pátria. Os soldados e as soldadas da borracha não mediram esforços em abraçar a mãe seringueira e extrair dela seu sustento.
Paralelo à persuasão, a seca de 1942 também veio contribuir para que os retirantes fossem recrutados e migrassem rumo a uma nova vida. A coordenação de mobilização econômica do Estado Novo, visando atender o interesse americano pela borracha natural brasileira, criou o SEMTA (Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para o Amazonas), o SESP (Serviço Especial de Saúde Pública) e a SAVA (Superintendência de Abastecimento do Vale Amazônico).
Após a entrada triunfante dos japoneses em dezembro de 1941 no sudeste asiático durante a segunda guerra mundial, os americanos começaram a ter uma queda repentina nos seus estoques de borracha. À beira de um colapso da sua principal matéria-prima para a indústria bélica, os Estados Unidos assinaram com o Brasil o acordo de Washington: decreto lei n° 5813 de 14 de setembro de 1943; que dentre outros acordos de parceria durante a segunda grande guerra, estava a de alistar trabalhadores da região Nordeste brasileira e enviar para o vale amazônico.
Conforme relata Maria Verônica Secreto: As estatísticas de morte nunca são muito precisas, mas podem nos dar uma idéia da magnitude da tragédia humana. De aproximadamente 50 mil soldados da borracha – entre trabalhadores e dependentes – que foram para a Amazônia entre 1943 e 1944, estima-se que quase a metade morreu ou desapareceu.
As propagandas oficiais invadiram o Nordeste. O “paraíso” parecia estar mais perto do que se poderia imaginar. O sonho de riqueza e de uma vida próspera adquiria cada vez mais esperança e fortalecimento, como a mais bem vinda realidade a entrar em cada lar nordestino. Tudo parecia que os problemas oriundos da vida na caatinga seriam superados através de um toque de mágica. Por todos os cantos da cidade havia cartazes que massificavam o apelo do Governo Federal.

O nordestino valente e leal precisa se alistar e mostrar todo seu amor ao país. Em 1940 o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia ganhou um novo aliado: A SEMTA contratou o pintor suíço Jean Pierre Chabloz, que ficou encarregado de produzir parte dos serviços de propaganda oficial do governo, objetivando mobilizar com sucesso os trabalhadores do sertão para os seringais nativos da região Norte do Brasil. Logo os trabalhos de Chabloz ficaram conhecidos, e depois de residir quase três anos no Rio de Janeiro, o pintor suíço fixa residência na capital cearense, de onde eram massificados e divulgados os seus trabalhos artísticos. Os trabalhos de Chabloz estavam a serviço de uma “elite intelectual” que precisava promover com segurança a idéia de que “o paraíso verde” seria sem resquícios de dúvidas a única solução para acabar com o estado de miséria que acometia o povo sertanejo do Nordeste brasileiro. Naquele momento, o cartaz tinha a importante missão de cumprir e fortalecer as determinações do Estado Novo, através do Departamento de Imprensa e Propaganda. O cartaz tornou-se um elemento da vida cotidiana no modo de produção capitalista. Ele invade as cidades e termina por influenciar de forma assustadora o nosso próprio ambiente. No Nordeste não fora diferente, de tanto visualizar cartazes extremamente sedutores, o homem da caatinga parecia estar convicto de que se tornaria o mais novo herói nacional e que certamente estaria prestes a conviver num ambiente que iria lhe oferecer fartura, conforto e prosperidade.

Mais borracha para a vitória, Fortaleza, 1943.Cartaz: Acervo Jean Pierre Chabloz – Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará - UFC.

 

Observemos que o cartaz é sedutor. Dois seringueiros estão posicionados como se estivessem pressionando a seringueira (Hevea brasiliensis) para que esta pudesse escorrer um “rio de leite”. Abaixo do corte está localizado um pequeno suporte responsável pelo escoamento do látex até o balde que está fixado no chão. No cartaz tudo parecia fácil e não deixava uma impressão de sofrimento, quando na verdade seria árdua a luta dos soldados da borracha na Amazônia brasileira. Reparem que os tradicionais cortes efetuados na seringueira para extração do látex, tais como a bandeira e a espinha de peixe não aparecem no desenho de Chabloz.

Rumo à Amazônia, a Terra de Fartura, Fortaleza, 1943.Quadro: Acervo Jean Pierre Chabloz – Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará - UFC.

Na paisagem pintada por Chabloz fica explicito o tão sonhado processo de transição da caatinga ao seringal. O nordestino valente e leal trocaria de imediato o habitat das cactáceas pelo habitat da Hevea brasiliensis. O estado de miséria e desolação abriria espaço para um mundo novo recheado de fartura. Caminhões super lotados da SEMTA deixam o sertão e partem triunfante para o berço esplêndido do vale Amazônico. A terra seca seria substituída pela fertilidade da terra molhada e o silêncio amargo do homem sertanejo, em breve se transformaria num sorriso de felicidade. O cartaz também sugere que a viagem seria rápida e confortável, e que certamente os flagelados da seca não passariam por nenhuma privação.

Vida Nova na Amazônia, Fortaleza, 1943.Quadro: Acervo Jean Pierre Chabloz – Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará - UFC.

 Atentem que a soldada da borracha usa um lindo vestido vermelho e de forma tranquila estende as roupas no varal. Observemos que o sol penetra livremente na mata semi-aberta. O gado está presente no curral, numa demonstração de que leite e carne bovina não seria nenhum problema para o recém-chegado nordestino na Amazônia. Crianças brincam e tratam de porcos e galinhas e a residência não deixa nenhuma dúvida do iminente conforto. A extração do látex é feito harmonicamente no quintal da casa, as seringueiras estão colocadas lado a lado, e para tanto, não haveria a necessidade do seringueiro está percorrendo estradas e varadouros. Completando a linda paisagem amazônica, a lavoura estava garantida, pelo menos água não seria o problema, e o paraíso finalmente estava prestes a cair na vida de homens, mulheres e crianças, até então, cansados de esperar pela felicidade que sempre tardara a chegar. Estava livre o caminho para uma “vida nova na Amazônia”.

Vai também para a Amazônia, protegido pelo SEMTA, Fortaleza, 1943.Quadro: Acervo Jean Pierre Chabloz – Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará - UFC.

 Na figura o nordestino se despede do sertão, o caminhão munido de grandeza humana transportaria os heróis da pátria amada. O SEMTA está presente na vida de cada migrante, oferecendo ao lar sofrido a tão esperada dignidade. Na despedida é somente alegria, festejo e felicidade. À porta de sua velha casa, estampada na caatinga do sertão, parecia ficar o último dos flagelados, triste, solitário e como diz o nordestino: “amuado” de ter que continuar vivendo numa terra de sofrimentos. Para quem ficou no sertão e de repente se deparasse com o cartaz acima, no mínimo sentiria uma imensa vontade de partir. O caboclo da roça não precisaria mais transportar água num pote de barro exposto no quadro de Jean Pierre Chabloz. Realmente o entusiasmo tomou conta de todos e contagiou de forma surpreendente os sertanejos nordestinos condenados à revelia da pátria.

Desenho que ilustra parte do contrato referente ás percentagens que correspondia aos seringueiros, Fortaleza, 1943.Quadro: Acervo Jean Pierre Chabloz – Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará - UFC.

 

No contrato padrão de trabalho nos seringais, os seringueiros eram facilmente ludibriados pela propaganda enganosa, assim como o foram nas demais peças montadas por Chabloz. O seringueiro que durante toda uma vida foi castigado e explorado pela ganância do seringalista, muitas vezes deve ter se lembrado das atraentes cláusulas presentes no seu contrato de trabalho, se não vejamos: ele teria conforme o cartaz acima, 60% da produção de toda borracha natural produzida em sua colocação; 50% da colheita da safra de castanha; 50% da madeira que supostamente seria derrubada; teria o direito a toda fartura da caça e pesca e ainda teria um bom pedaço de terra e tempo suficiente para plantar e colher tranquilamente. As decepções, a desolação, as doenças e as mortes ainda estavam por vir, e os soldados e soldadas da borracha iriam ter que enfrentar a agonia de sobreviver em plena selva Amazônica, sem nenhuma assistência por parte de quem quer que seja.   

 O equipamento de viagem, fornecido pela SEMTA. Fortaleza, 1943. Quadro: Acervo Jean Pierre Chabloz – Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará - UFC.
 

 
As peças criadas por Chabloz tinham, portanto uma meta a ser cumprida: fazer com que milhares de flagelados nordestinos absorvessem os signos ideológicos e conseguissem satisfazer seus desejos através da concretização do binômio seca – migração. Esta junção tornou-se, pois indissociável e a linguagem persuasiva contribuiu fortemente para estabelecer nos rincões da caatinga nordestina, o maior processo migratório da história do País.
Agora na Amazônia os soldados da borracha iriam deparar-se com a primeira leva de nordestinos ocorrida durante o primeiro ciclo da borracha. Assim como os primeiros migrantes, eles trouxeram para o vale amazônico uma vasta heterogeneidade sócio – linguístico – cultural que honrosamente, integrará e engrandecerá de forma intensa e douradora, o notável berço multicultural dos povos da floresta.

Aproximadamente três décadas depois, seringueiros e seringueiras, irão ter que enfrentar um novo capítulo na história de suas vidas: o avanço da frente pecuária que destruía os seringais nativos da região amazônica.

VEJA TRAILER DE DOCUMENTÁRIO SOBRE SOLDADOS DA BORRACHA

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