O latifundiário Lerson Werno Sapiras, conhecido como Corbélia (mesmo nome do latifúndio tomado por ele a partir de terras da União), montou, com cumplicidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), um esquema sinistro de grilagem para se apropriar ilegalmente de terras públicas em Ariquemes, Rondônia.
A denúncia foi apurada pelo jornal A Nova Democracia através de uma farta documentação vinda de camponeses de Rondônia. Os métodos usados pelo latifundiário Sapira são semelhantes aos investigados em duas operações da Polícia Federal, a Declínio (2024) e Julius Caesar (2022).
A Operação Declínio comprovou que funcionários do Incra de Rondônia ajudaram na emissão de documentos para facilitar o cadastro irregular das áreas griladas e a emissão de Certificados de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR). O CCIR é um documento indispensável para legalizar em cartório a transferência, o arrendamento, a hipoteca, o desmembramento, o remembramento e a partilha de qualquer imóvel rural. É essencial também para a concessão de crédito agrícola pois é exigido por bancos e agentes financeiros.
Latifundiários e laranjas em Projetos de Assentamento
De acordo com a apuração de AND, o chefe da família Sapiras, Lerson Werno Sapiras, usa do nome de laranjas (frequentemente familiares) para obter títulos do Incra e, em seguida, se apropriar das terras. Documentos acessados pelo AND mostram que dois dos laranjas são a filha do latifundiário, Vera Lúcia Sapiras, e o neto, Felipe Sapiras, que ostentam fotos em viagens ao exterior nas redes sociais.
Espelho de unidade familiar de Felipe Safiras no PA Jatuarana. O espelho de unidade familiar é o instrumento que identifica os agricultores familiares e/ou agricultores familiares assentados aptos a realizarem operações de crédito rural junto ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.
Felipe Sapiras, neto de Cordélia, na ponte do Brooklyn, Estados Unidos. Foto: Redes Sociais
Certificado do Incra concedeu à Vera Lúcia Sapiras, filha de Cordélia, a condição de assentada no PA Jatuarana.
O esquema do latifundiário consiste em utilizar o Projeto Geo Rondônia para “esquentar” os documentos da área em nome de terceiros, neste caso familiares e funcionários. O Projeto Geo Rondônia busca assentar 14.775 famílias de 26 municípios de Rondônia em uma área de 40 mil quilômetros que será dividida em 120 Projetos de Assentamento.
Espelho de unidade familiar da laranja Kate Priscilla.
No passo a passo criminoso, o laranja obtém a posse da terra na condição de assentado e posteriormente recebe o título da terra. Depois, o latifundiário forja a compra da terra do “assentado” para ficar “legalizado”.
O assentamento grilado pela máfia Sapiras foi o Jatuarana. Criado em 1988, ele tem o objetivo de assentar mais de 700 famílias e abrange os municípios de Ariquemes, Vale do Anari e Theobroma. Atualmente, os Sapiras tem mais de 3 mil hectares do assentamento.
A grilagem também ocorreu fora das fronteiras do Jatuarana, de forma que 10.943.8 hectares estão nas mãos da família latifundiária. As terras registradas por meio de laranjas somam um valor de R$ 109,4 milhões.
Ligações com o bolsonarismo
É sabido que uma máfia nunca se sustenta sem ligações políticas. Em 2019, o governo do ultrarreacionário Jair Bolsonaro organizou o “Festival de Tambaqui da Amazônia” na Esplanada dos Ministérios. Foi uma festança: seis toneladas (4 mil bandas) de tambaqui foram assadas. E quem pagou grande parte foi a família Sapiras.
Segundo nota do próprio governo à época, os peixes foram doados pela Associação de criadores de Peixes do Estado de Rondônia (Acripar), Zaltana Pescados e Agrofish. Duas delas (Acripar e Agrofish) pertencem à Edson Sapiras, filho de Corbélia.
Durante o evento, uma peixada especial foi feita na sede da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), à convite do diretor-geral à época, Alexandre Ramagem, chefe do aparelho ilegal conhecido como “Abin paralela”. Convidados especiais foram Jair Bolsonaro, Nabhan Garcia (então Ministério da Agricultura à época) e Marcelo Álvaro (então ministro do Turismo).
O secretário de Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura, Jorge Seif, se animou com o evento e divulgou nas redes sociais. “Agradeço à Acripar na pessoa do produtor e amigo Francisco Hidalgo pelo fornecimento direto de Rondônia desse pescado nativo, amazônico, sustentável e saboroso!”, comentou na legenda.
Francisco Hidalgo Farina é atualmente presidente da Comissão Nacional de Aquicultura Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), entidade sindical que defende o agronegócio, latifúndio de novo tipo, e provavelmente é a figura pública usada para desviar a atenção dos Sapiras dos holofotes públicos.
Em outro momento, Seif, que também foi um dos promotores do Festival Tambaqui da Amazônia, declarou que: “Para estimular o setor, a secretaria trabalha para facilitar o acesso do produtor ao crédito, desburocratizar normas e reduzir barreiras ambientais. “Acabar com essa esquizofrenia de leis que não têm sentido”, afirmou o secretário.” Quando Jorge declara que quer reduzir barreiras ambientais, e acabar com “esquizofrenia de leis”, na verdade quer o terreno limpo para mais roubos de terra dos camponeses em detrimento de cada vez mais concentração nas mãos do latifúndio, nesse caso, da família Sapiras.
Mais crimes
Além da grilagem de terras Vera Lúcia Sapiras, filha do latifundiário “Corbélia”, é uma das proprietárias da Construtora Vanvera, condenada por crimes de parcelamento ilegal de solo também em Ariquemes. Um dos crimes da construtora consistiu em vender milhares de lotes sem conter o registro imobiliário, ou seja, sem ter o direito de propriedade do lote. A venda dos lotes sem registro chegou a ser anunciada para o público, mas sem a informação de que não havia registro imobiliário.
Os magnatas também iniciaram a construção de empreendimento privado violando o Plano Diretor da cidade de Ariquemes, impedindo a expansão de uma importante via de acesso da cidade, a Avenida JK.
Não bastando essas questões, os empresários não realizaram o indispensável Estudo de Impacto de Vizinhança e Relatório de Impacto de Vizinhança (EIA-RIVI)e realizaram propaganda enganosa sobre a existência de área de lazer e clube de hipismo, uma vez que nada disso estava submetido ao projeto enviado à Prefeitura Municipal.
Proteção para os grileiros, repressão para os camponeses
Revoltados com o esquema criminoso do qual o Estado é partícipe, camponeses tomaram, no dia 23 de setembro de 2023, as terras griladas pela máfia Sapiras no Assentamento Jatuaruna. Poucos dias depois, a mesma Polícia Militar (PM) que faz vista grossa à grilagem invadiu a ocupação junto dos paramilitares bolsonaristas do movimento “Invasão Zero” para realizar um despejo criminoso. Depois da expulsão das famílias, a liderança camponesa da área, José Carlos dos Santos, conhecido popularmente como Cascaval, foi assassinado. Os tiros saíram de uma pistola de calibre .40, de uso exclusivo da Polícia Militar de Rondônia.
Em depoimento à reportagem, as famílias afirmam que “não confiamos que a mesma justiça que acobertou Corbélia vai fazer alguma coisa por nós, e não vamos mais esperar”.
Frente ao cenário de repressão e asassinato, complementam que: “qualquer coisa que vier a acontecer será de total responsabilidade do governo de Luiz Inácio (PT) e de Marcos Rocha (governador de Rondônia/União), que nada fazem para punir os paramilitares dos grileiros e os crimes de pistolagem, ao mesmo tempo que perseguem os camponeses com todos os aparatos do Estado.”
É um recado que deixa claro que as famílias continuarão a lutar pelos seus direitos e não aceitarão que ninguém se coloque no caminho da luta pelo sagrado direito à terra. Em outras regiões do Brasil, famílias camponesas enfrentam da forma que podem os bandos pistoleiros, o grupo paramilitar “Invasão Zero” e os aparatos oficiais pelo mesmo direito, como na comunidade Barro Branco, em Pernambuco, e na cidade de Messias, em Alagoas.