Era uma vez uma cidade muito suja e imunda. Capital de um Estado, o meu adorado, amado e insubstituível torrão tem muita sujeira, lixo esparramado pelas ruas, dejetos, carniça, animais mortos apodrecendo a céu aberto, praticamente não dispõe de nenhum saneamento básico e em pleno século vinte e um, e situada na hídrica região Amazônica, tem menos de três por cento de água tratada. Por isso, apresenta também muita vala aberta com esgoto correndo entre as moradias; no inverno é muita lama e no verão, só poeira. A minha cidade não tem IDH nenhum e segundo o Instituto Trata Brasil tem uma das piores qualidades de vida do país. O centro se confunde com a periferia de tão sujo e fedorento que é. Os habitantes da minha cidade, embora todos felizes, só veem o fundo do poço se olhar para cima. Muito diferente de outra crônica, nela não há palmeiras nem sabiás. Tem muitos urubus, ratos, carapanãs, mutucas, piuns, mucuins e uma das menores áreas verdes já verificadas em uma cidade Amazônica.
Tem um rio muito grande, e já poluído, na minha cidade. Não é como “o rio da minha aldeia”, mas é um rio. Cheio de mercúrio, já estuprado pelo poder do capital, desviado, domado, a caminho da morte e quase sem nenhuma serventia, insiste em lutar contra a ganância do homem sacudindo seus banzeiros contra as barrancas como num último ronco ou suspiro antes da derrocada final. Dizem que na minha cidade também existia uma grande estrada de ferro e que alguns oportunistas ignorantes, se conseguirem encontrar algum resquício dela, gostariam de transformá-la em Patrimônio da Humanidade. Obra pública inacabada é o que não falta na minha cidade. Parece até uma pitoresca marca registrada do lugar: teatro estadual, viadutos, Centro Político Administrativo, sede do INSS, ponte de trezentos milhões de reais sobre o rio, iluminação na BR duplicada, várias avenidas sem arborização nem canteiros centrais, rodoviária nova que jamais será construída, porto imundo que dá nome à cidade...
Na minha cidade tem também muito político canalha e ladrão. Tem uma Assembléia Legislativa tão atuante que, muito diferente da historinha do Ali Babá, só apresenta 24 membros permanentes. E todos trabalhando sempre em benefício do povo. Suas propagandas na mídia não lhe deixam mentir. Na minha cidade existe Justiça, Ministérios Públicos, Tribunais, Poder Judiciário, juízes, promotores, mas quase todos os ladrões do dinheiro público estão soltos e fora das cadeias. O que mais poderia ter em minha cidade senão um presídio de segurança máxima, carnaval com desfile depois do carnaval, Semana Santa em junho, fumaça e queimadas no verão? Tem um açougue que mais se parece com um hospital de pronto-socorro, um trânsito caótico e completamente desorganizado, violência exacerbada, e uma rodovia federal que arranca choro dos políticos que não conseguem dinheiro para a sua recuperação. No Brasil inteiro não há cidade tão boa e civilizada como a minha. Dizem que é uma cópia perfeita do Éden.
Por tudo isso, eu não troco a minha amada terra adotiva por nenhuma outra do mundo. Pouco vai adiantar tentarem me expulsar deste pedaço de Brasil dizendo que nasci em outro lugar. Minha identidade é daqui, destas plagas. Sair desta aldeia para quê? Em qual poente teria a inspiração que tenho para escrever minhas crônicas? Além do mais, onde se encontra tanta cultura misturada, e mal copiada, em um único lugar? Onde se encontra tanta bizarrice? Se não fosse esta cidade, onde eu conseguiria ganhar o pão de cada dia? Esta cidade me alimenta até a alma. Não viveria sem ela. Futebol não tem na minha cidade, mas há muitos torcedores que se deliciam com este esporte e por isso, perdem dias inteiros torcendo sentado nos bares. As passarelas da minha cidade, só existem duas, servem para as pessoas andarem por baixo delas. Já viadutos inacabados (existem muitos na minha cidade), também chamados de “catacumbas petistas”, têm pouca ou nenhuma serventia e são usados para fazer propagandas de circos. Na minha cidade existe uma banda que coloca 140 mil pessoas nas ruas durante o carnaval e tem greve na Educação com apenas 140 pessoas. Qual cidade é cortada por igarapés fedorentos que já viraram esgoto? Apaixone-se por esta terra, por esta cidade. Por isso, “seja altruísta, faça voto de pobreza e prefira sempre morar por aqui”. Os políticos vão agradecer o resto de suas vidas. E eu também. Alguém sabe o nome da minha cidade?
*É Professor em Porto Velho.