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POESIAS
ANDERSON BRAGA HORTA – Brasília, DF
RETRATO INDIMENSIONAL
Meus pais estão no retrato
sorridentes. O sorriso
é claro e meigo. Entretanto,
bem sei que atrás dessa luz
há tanta dor concentrada !
Uma dor que não se fez
em dois dias, em um mês.
Ai ! dor de toda uma vida !
É dor. Mas dor familiar,
feita de coisas miúdas
mais que de grandes desastres :
de pedaços de esperança,
de uma atenção infinita,
da rotina de cuidados
de amor diários – rotina
iluminada ! - , de restos
de emoções desencontradas,
de vagos desgostos, vagos
presságios, sonhares vagos,
das precisas incisões
que rasga no rosto a cega,
lenta lâmina do tempo.
Vejo agora como a soma
de tantas dores dispersas,
como essa dor concentrada
alimenta a luz sublime
na sua face estampada.
Vejo-o como nunca o vira
no tempo deles. Agora,
fora do tempo e do espaço,
melhor que no espaçotempo,
melhor do que nunca e sempre,
as nossas luzes se encontram
num doce carinho antigo.
Alheios a tempo e espaço,
meus pais descem do retrato
e vêm conversar comigo.
REYNALDO VALINHO ALVAREZ – Rio de Janeiro, RJ
O ANJO PELA MÃO
Leva um anjo contigo na viagem.
Seja Homero ou Vergílio, Horácio ou Dante,
Camões ou Gil Vicente, um bom cristão
ou um pagão daqueles que habitaram
essas muitas ruínas a que foste,
chamado pela voz, de antigos textos,
gravados como um signo escarlate
ou o sangue de flores encarnadas
como os cravos de ancião e nobre olor.
Toma o teu anjo pela mão. Quem guia
não és tu, bem o sabes, mas aquele
que, antes de ti, criou na argila virgem
ou na pele de ovino ou no papiro
ou no primeiro in-fólio o som e o signo
do ritmo das palavras, como o mestre
que junta cores, massas e contornos
para arrancar do nada o quase nada,
que é quase tudo que nos resta, ó mundo,
enquanto a fome, a guerra, a peste e a fúria
faturam seu comércio contra o ser.
Leva teu anjo aos ombros como um filho,
sabendo embora que nada lhe ensinas,
pois o velho é que aprende com a criança
e, ao renovar-se, a vida sabe mais
quando colhe no chão a flor plantada
por quem viveu há séculos atrás,
flor que renasce a cada vez que lês
versos que ressuscitam quem os fez.
GILBERTO MENDONÇA TELES – Rio de Janeiro, RJ
EXEGESE
Você quer se esconder, então se mostre.
Diga tudo que sabe sobre a vida.
Conte a sua experiência nos negócios,
proclame seu valor de parasita
e deixe que discutam nas casernas
o seu bendito fruto entre as melhores
famílias desta terra.
Depois esconda tudo num poema
e fique descansando: ninguém lê.
Se ler, começam logo a ver navios
e achar que tudo é poetagem, símbolos,
desejos reprimidos,
psicanálises,
o diabo a quatro.
O poema não é uma caverna
sigilosa, com sombras tautológicas
nas paredes.
O poema é simplesmente
a sombra sem caverna, o vulto espesso
de si mesmo, a parábola mais reta
de quem escreve torto,
como um deus
canhoto de nascença.
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS – São Paulo, SP
SONETO DE VIDA INTERIOR
Senhor, põem-me, outra vez, à Tua frente
E faze-me encontrar o Teu caminho.
Perdido fui e sou, se de repente
Somente a mim me entregas e sozinho.
Quantas vezes me sinto diferente
E volto a ser, no tempo descaminho !
Quantas vezes Te fito e sou descrente
E, no espaço, me faço agreste espinho !
Senhor, mostra-me sempre o Teu amor,
Qual tesouro enterrado num terreno,
Valendo mais que todos, pois que é vida.
E faze-me Teu filho no que for
A vivência daquele tom sereno,
Que me leva à chegada da partida.
JOSÉ NÊUMANNE PINTO – São Paulo, SP
Que és fonte nesta noite estrangeira
Nesta noite estrangeira,
aporto em teu leito
como quem chega de viagem
(a longa viagem da vida):
o bagaço dos músculos,
o cansaço dos séculos,
o espaço dos vínculos.
É o peso da paixão
que lança a âncora
no cais do teu ventre;
desembarco sorrateiro,
como um ladrão,
esgueiro-me nas sombras,
fujo à face da lua,
tal flauta sem som,
qual nauta sem sono.
Pulo no escuro,
feito um gato,
entre pé e areia
um abismo,
agarro-me a teus cabelos
(um salto abissal,
sem rede),
bebo um pântano sem fundo,
profundo.
Dentro de ti,
que és porto,
faz noite ainda
(o mar é mancha móvel,
teus seios, dois faróis).
A distância de léguas,
ocultas um bote
em conchas
(muito a caminhar
até os remos
de tuas pernas brancas)
Dentro de ti,
que és ilha e plana,
a mina verde
dos tesouros submersos;
e os sóis rubros
das fogueiras profanas.
Ato o massame firme
a teu travesseiro:
queimas asas de Ícaro,
derretes coração de cera.
Assim mergulho em teus lençóis
com o peito em brasa
e as mãos limpas
(lavadas dentro de ti,
que és vento e fonte ).
ELIANA POTIGUARA – Rio e Janeiro, RJ
A VELHA E O MOÇO
Quando eu te conheci, guerreiro
jamais iria sonhar
que nossos corpos se tocariam
que nossas bocas se esquentariam
com ares de manhã.
Quando eu te conheci, amigo
amei-te terna pela luta
amei-te muda pelo mundo
desprezando línguas falantes.
Quando eu te conheci, amigo
estava só, triste e doente
ensaiando um abrigo
de amor, um doce amante.
Quando eu te conheci, guerreiro
vi brotar a luz em mim
vi brilhar a juventude
corroída no semblante.
Quando eu te conheci, amigo
voltei a não vivida infância
passei a pular feito criança
buscando um sangue novo – a esperança.
Mas já é tarde, doce guerreiro
pois não trago no peito a moça pra ti,
o tempo passou e não pôde nascer
a mulher que não deixaram viver !
ANTONIO CARLOS SECCHIN – Rio de Janeiro, RJ
A ILHA
E olhamos a ilha assinalada
pelo gosto de abril que o mar trazia
e galgamos nosso sono sobre a areia
num barco só de vento e maresia.
Depois, foi a terra. E na terra construída
erguemos nosso tempo de água e de partida.
Sonoras gaivotas a domar luzes bravias
em nós recriam a matéria de seu canto,
e nessas asas se esparrama nossa glória,
de um amor anterior a todo estio,
de um amor anterior a toda história.
E seguimos no caminho de ser vento
onde as aves vinham ver se havia maio,
e as marcas espalmadas contra o frio
recobriam de brancura nosso rumo.
E abrimos velas alvas que se escondem
dos mapas de um sonho pequenino,
do início de uma selva que se espraia
na distância entre mim e o meu destino.
ANTÔNIO MIRANDA – Brasília, DF
RETRATO 3 x 4
Esse que aparece
na fotografia
não sou eu:
é o que fizeram de mim.
Enforcado,
de gravata,
no rito burocrático.
Transparece um modelo padronizado
conforme os regulamentos em vigência.
Sem sinais particulares
ou qualquer assomo individualista;
é antes,
o protótipo o fotocópia
de uma imagem pública e repetida
pré-moldada.
De frente,
com olhar taciturno e impessoal,
assemelhando-se a qualquer outro
e nunca a mim mesmo
que há muito deixei de existir
na contabilidade dos recursos humanos
monotonamente igualizados
nas desigualdades racionalizantes.
O terno seriado
e o olhar emprestado
de ícones executivos
com documentação farta
e direitos protegidos.
Debidamente protocolado,
carimbado,
predisposto à comodidade
dos arquivos-mortos.
ARISTIDES TEODORO – Mauá, SP
POEBOMBA
“Cem sóis flamejam no horizonte”
Maiakóviski
Quero um poema lunático
límpido e transparente,
pra cantar meu povo;
um poema explosão,
feito de acido urânio
de cogumelo adesivo
e diamante combustão
que rasgue as vísceras do problema.
Quero um poema estereotipado,
um poema espada aguda,
um poema felino, predatório,
pra destroçar com ira
os ladrões, os corruptos,
as obras, as hienas,
que comem as vísceras do meu povo.
Quero um poebomba
poluído e leprosante
de 9.000.000 de megatons,
de 100.000.000 de Hiroximas
pra fulminar os feitores
que comem as vísceras do meu povo.
Quero um poema terremoto,
um poema furacão,
convulso e vulcânico;
um poema diluvial,
fim-do-mundo,
um poema dicionário
que corte a face da terra,
que risque a pata do mapa,
um poema fóssil
um poema cristal,
um poema ósseo,
um poema bisturi,
que extirpe as vísceras
dos corruptos e dos ladrões,
das cobras e das hienas,
que as carnes do meu povo comem.
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