Sempre me chama a atenção os restos de um cartaz colado nos escombros do viaduto inacabado da Avenida Campos Sales com a BR 364, nele se lê “explore, enriqueça e vá embora”. Ao lado outro cartaz, aparentemente produzido pela mesma pessoa, com o mesmo tipo de papel e impressão diz “identidade anestesiada de caboclo”. Os dois sempre me levam a pensar muito sobre como se sentem aqueles que fizeram de Porto Velho a sua terra, tanto por nascimento, quanto por opção.
Cheguei aqui no início dos anos 1970, quando meu pai, militar do Exército, veio transferido. O Território passava por profundas transformações. Iniciava-se um período de prosperidade alavancado por atividades de garimpagem e mineração da cassiterita, a migração agropastoril começava a ser fortemente alavancada pelos governantes militares e, por fim o rio Madeira, começava a despontar como grande produtor de ouro de aluvião.
Neste contexto formava-se uma nova estrutura social, política e econômica que daria origem ao estado de Rondônia. Passaríamos a década de 1980 em uma situação confortável, impulsionados pelo desenvolvimento agropastoril, pela mineração do ouro no Madeira e por fatores que permitiriam a transformação do Território federal de Rondônia em Estado de Rondônia. A BR 364 seria, finalmente pavimentada, facilitando a ligação do novo estado com o restante do Brasil. Os custos da eletricidade começavam a se reduzir com a contrução da UHE Samuel e o Linhão assegurava energia constante para os novos municípios da Br. Rondônia se configurava como o grande Eldorado do Brasil.
Nas décadas seguintes, notadamente nos anos 1990 a situação se mostrava adversa. O Estado de Rondônia começava a viver as dificuldades da política e da economia. Sucederam-se fatos sombrios como o fechamento dos garimpos do Madeira, a formação das periferias urbanas, pobres e violentas em cidades como porto Velho, Ji-Paraná e outras e o narcotráfico dominou o cenário da contravenção e do crime no estado. Por outro lado uma enorme recessão avançou e a década se mostrava perdida.
Em meados da década de 2000, uma nova era redentora se anunciava. O governo federal anunciava que a cidade de Porto Velho sediaria duas das mais espetaculares obras do PAC, as Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau. A cidade de Porto Velho e todo o estado de Rondônia polarizaram um acalorado debate que culminou com a campanha deflagrada por comerciantes, industriais e políticos de todo o estado, denominada “Usinas Já”. De um lado os setores mais avançados da intelectualidade, grupos de esquerda e os Movimentos Sociais, opositores do modelo previsto para a construção das hidrelétricas. De outro os setores progressistas, liderados pelos comerciantes e empresários, ávidos pelos lucros que se anunciavam e favoráveis à construção das Usinas.
A população escaldada por década e meia de recessão, desemprego e marginalização social e econômica aderiu em massa ao ”Sim” do Usinas Já. Ambientalistas e outros ativistas sociais viam seus argumentos desmoronarem diante das promessas de bem estar e recuperação da economia. E as Usinas chegaram, trazendo com elas milhares de trabalhadores, empresários, administradores e gestores diversos. Começava um próspero período onde o lema “explore, enriqueça e vá embora” parecia fazer todo sentido. Milhares desembarcavam em Porto Velho sob as promessas de emprego e prosperidade. Poucos enriqueceram, muitos foram embora, carregando nada além de suas decepções. Outros, entretanto materializaram o slogan, explorar, enriquecer e ir embora.
A cidade nunca havia visto tanta abundância. Chegavam recursos de todos os lados. O saneamento parecia ser uma certeza, viadutos começavam a ser erguidos, os empregos estavam à disposição de todos os que quisessem trabalhar. Contudo, o sonho logo começava
a se desfazer. Aos poucos os cidadãos, notadamente aqueles que realmente mantinham, em seu íntimo, talvez anestesiado, algum resquício dessa identidade cabocla. As miragens de uma cidade de todos não se sustentavam. As grandes obras esbarravam nos problemas e nas desculpas políticas de sempre e que nem o mais tolo dos mortais acreditava mais. O descaso pela cidade, de complexa administração pareceu se avolumar e os vigorosos estudos de impactos das grandes usinas se mostraram frágeis e inconsistentes.
As barrancas do rio Madeira, no trecho entre Santo Antônio e Porto Velho começavam a desmoronar com a força do banzeiro causado pela abertura das primeiras turbinas. Da mesma forma começamos a assistir a outros desmoronamentos, como o do trecho da BR 364 na entrada de Porto Velho e a esperança que acalentamos de que dessa vez realmente teríamos uma cidade de todos, minimamente cuidada, limpa e digna de ser a capital de nosso estado.
Hoje me sinto como um desses caboclos cuja consciência quase foi anestesiada. Espero como cidadão que esse torpor desapareça e que a sociedade possa reagir a esse marasmo, incredulidade e insatisfação que nos acomete. Estamos diante de um momento importante, ás portas de uma escolha que definirá nosso futuro municipal. É hora de escolhermos alguém com um pouco mais dessa alma de caboclo, mas NÃO anestesiada. Alguém que não tenha adotado para si o lema “explore, enriqueça e (talvez) vá embora”.
Marco Antônio Domingues Teixeira, ou simplesmente,Marco Teixeira é professor da Universidade Federal de Rondônia, Mestre em História e Doutor em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental. Escreveu “História Regional” e “O Rio e os Tempos”.