Entre 1983 e 1986 meu pai teve um restaurante bem popular em Porto Velho, o Terraço, que ficava no quinto andar do Edifício Rio Madeira, justamente o terraço - oras - . Era ponto de referência e bem frequentado e ali eu ajudei como atendente quando estava no início da minha adolescência, descobrindo ainda um mundo em volta.
Ali eu conheci um garçom chamado Arcelírio Coelho, um sujeito muito gente boa, magrelho, brancão, fumava nos intervalos e só andava de botas. Ele era um assíduo cinéfilo da bagaceira programação do Cine Brasil, que mantinha em cartaz filmes de kung fu - o que você imaginar de títulos com o nome Shao Lin ou o astro Bruce Lee com sobrenomes como Li, Ly e Lei -, westerns italianos aos montes - Sartana já dormia dentro do cinema com tantas reprises e derivados de baixo orçamento -, Giulliano Gemma era quase um portovelhense de tanto que sua figura empunhando a Colt 45 era exposta na tela, seja com reprises de “O dólar furado” ou “Sela de Prata”. Porém...
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Porém, o ouro dessa programação popular e que tinha o público cativo, como o garçom que trabalhava no restaurante do meu pai, eram as pornochanchadas produzidas na Boca do Lixo em São Paulo, com muito humor e sexo simulado. Até que em 1982 chegou em Porto Velho aquele que seria o filme mais popular, o mais querido, o mais visto, o que provocava filas com gente que não tinha medo de esconder o rosto na hora de comprar o ingresso, sim, o mítico e clássico “Coisas Eróticas”, o primeiro filme pornô brasileiro com cenas de sexo explícito, produzido e dirigido por um picareta da Boca do Lixo que fez história, Raffaele Rossi.
Avalie que estamos no começo dos anos 80, quando o país ainda estava vivendo uma ditadura militar, em que a censura no país era muito ativa.
Em 1982, quando o filme foi lançado logo após a fracassada Copa do Mundo, em que uma das melhores seleções brasileiras da história perdeu para a Itália, deixando brasileiros numa ressaca desgraçada, o presidente era o general João Figueiredo, extremamente conservador e para piorar, meses antes ele fez um duro discurso condenando a pornografia na arte.
O filme chegou aos cinemas brasileiros semanas depois da Copa do Mundo com uma classificação para maiores de 21 anos. E ainda que com restrições, é até hoje um dos maiores sucessos de público da história do cinema, a Embrafilme contabilizou oficialmente que “Coisas Eróticas” conseguiu levar nos seus primeiros seis meses 4 milhões e 729 mil pessoas, porém em estimativas maiores, os produtores do filme acreditam que na época foram oito milhões, pois quando o filme circulou nos cinemas dos interiores do Brasil não era hábito do bilheteiro rasgar o ingresso, ele conservava o bilhete para ser vendido de novo, o que afetava a contabilidade.
Eu então com 13 anos eu vi o filme em cartaz no Cine Brasil e lá estava uma fila gigante rodeando a esquina da Avenida Presidente Dutra com a Sete de Setembro, enquanto isso no Cine Lacerda estava reprisando “O Exorcista” pela enésima vez. E havia uma fila também, mas não era tão grande quanto o filme pornô.
Dois anos depois, eu já com 15 anos, num dos intervalos de atendimento do restaurante lá estava o Arcelírio todo serelepe esperando acabar o expediente a noite para ir ao cinema, como ele fazia, pois gostava dos filmes de westerns que viviam sendo reprisados no Cine Brasil. Mas nessa noite ele disse que iria sair com a patroa pois estava sendo reprisado “Coisas Eróticas” e ela nunca havia assistido. E aí eu percebi que “Coisas Eróticas” estava de novo em cartaz e creio que com o mesmo cartaz desgastado colocado na frente do cinema. E era um programa institucional libidinoso que ainda levava um público considerável em Porto Velho.
Esse filme se tornou o maior concorrente de outros dois que eram reprises constante no Cine Brasil, um era “Marcelino, Pão e Vinho”, um filme cristão espanhol de 1955 que era um sucesso absurdo na semana santa em Porto Velho, e o outro um filme antigo sobre a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, preto e branco, um sucesso entre as carolas, que amavam assistir na semana santa.
“Coisas Eróticas” se tornou um fenômeno em Rondônia, pois era garantia de boa bilheteria. Durante um bom período foi assim, até chegar o advento do vídeocassete e o lançamento dos filmes pornográficos em VHS, que acabou com os filmes pornôs nos cinemas.
O curioso é que por conta do filme de Raffaele Rossi, os cinemas locais, incluindo até mesmo o Cine Lacerda, passou a exibir filmes pornôs. Clássicos como “Garganta Profunda” e “Por trás da porta verde” se tornaram referências da programação noturna. Outros dois filmes pornôs que se tornaram célebres aqui, mas sem o impacto de “Coisas Eróticas” foram “O Rebuceteio”, de Cláudio Cunha, e “24 Horas de Sexo Explícito”, do José Mojica Marins - o Zé do Caixão, sem grana e fazendo o seu filme pornô, aliás o primeiro a ter uma cena de zoofilia.
Como análise de um produto de massa, para consumo, esses filmes atendiam a expetativa de quem apreciava esse tipo de material pornográfico, como arte são horríveis, desde a parte técnica precária, muitos erros de cenas, a maioria do intérpretes não eram atores, mas modelos ou pessoas do meio pornô - prostitutas ou garotos de programa - que toparam a aventura.
Enquanto no clássico “Coisas Eróticas” a atriz principal era a Jussara Calmon, que gravou as cenas de sexo em duas semanas com o ator Oásis Minniti, num trabalho braçal feito à duras penas. No elenco tinha uma atriz muito conhecido das pornochanchas, Zaíra Bueno, que era mais séria e recusou gravar cenas explíticas. Uma curiosidade do filme é que o filme foi feito de maneira clandestina, de uma ideia ousada do diretor Rossi, que após assistir o filme “Império dos Sentidos” (1976), o achou nada excitante, mas chato e “nojento”, e como a censura brasileira liberou o filme com restrição, ele poderia criar algo parecido, mas com o “molho” brasileiro. A ideia nasceu daí e ficou anos martelando na sua cabeça até ter a coragem de fazer e arranjar um orçamento mínimo.
O filme consiste em um compêndio com três histórias independentes, e incluia sexo grupal e até sadomasoquismo, só que feito num padrão de qualidade bem duvidoso, com uma fotografia escura, diálogos horríveis e artificiais, para piorar, com erros de continuidade absurdos. Mas quem ligava para esses detalhes.
No original “Coisas Eróticas” tinha 87 minutos de duração, mas devido a ousadia e a exibição do sexo explícito, o Departamento da Censura determinou o corte integral de sequências inteiras que considerou ofensivas, deixando o filme com 47 minutos. O que deu muito trabalho para os editores deixar o filme alinhado com a restrição imprópria para 18 anos.
No entanto, a censura havia mandado fazer o "corte integral do segundo quadro", em vez de escreverem história, capítulo ou episódio. Por conta desse detalhe, Rossi aproveitou e mandou tirar apenas o segundo fotograma do filme. Quando os censores se deram conta de que havias sido enganados pelo diretor do filme, 15 dias depois, após o seu lançamento e em um dia que as sessões contaram com 60 mil pessoas que já tinham visto o longa, foi o caos, pois isso acabou levando a Polícia Federal a correr o país recolhendo cópias de "Coisas Eróticas", retirando das salas imediatamente. O filme só voltaria aos cinemas dois meses depois, com um mandado de segurança - que elevou a faixa etária para 21 anos. Justo essa cópia já reformulada que chegaria à Porto Velho e faria parte do acervo de programação do Cine Brasil.
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Claro só pude assistir o filme em 1987, quando já estava em uma das reprises intermináveis no Cine Brasil, o filme já havia abaixado a faixa etária de segurança para 18 anos. E no Cine Brasil a lotação não era mais tão alta, mas aí me veio uma surpresa, pois o filme era muito ruim e todos os atores inseriram as suas vozes na pós produção, pois não tinha como captar o som direto, a Boca do Lixo não tinha tecnologia para isso. Um dos atores não conseguiu gravar a sua voz no dia combinado e na dublagem foi substituído pelo saudoso Marthus Mathias, que era um dublador icônico e muito conhecido por ter feito a voz do personagem Fred Flintstone - sim, o clássico desenho animado da Hanna Barbera, um grande sucesso -. Eu já achava o filme antiexcitante, piorou, pois toda vez que o ator falava eu queria rir.
Eu não sou fã do filme, mas respeito a sua história como pioneiro dentro do cinema pornográfico brasileiro e ainda mais quando foi um dos maiores sucessos de bilheteria da história de Rondônia.