Política em Três Tempos
Por Paulo Queiroz
1 – HERÓI DEPRECIADO
Ora, veja o leitor, estamos em pleno curso daquela que se convencionou chamar “Semana da Pátria” – cujo ponto alto se dará com as festividades e desfiles deste domingo. Estamos? Conquanto as comemorações do 7 de setembro ainda guardem algo de solene, cívico e reverente pelo que é dado como ocorrido há 186 anos nas margens do Ipiranga, o respeito que se dedicava ao personagem principal daquela encrenca há muito vem sendo depreciado em meio à onda de revisão histórica alçada à condição de espetáculo.
De uns tempos para cá, sempre que se fala de D. Pedro I, a moda é lembrar que sua alteza era um boêmio dissoluto, um mulherengo incorrigível e, ofuscando toda glória do brado retumbante, acentuar que o herói da independência estava com uma baita caganeira no dia em que deu por rompidos os laços com Portugal.
O fato é que o realce que uma boa parcela da população e de historiadores continua a dar a esses aspectos picarescos parece apenas confirmar o prazer que sentem os brasileiros em reduzir os feitos dos seus vultos históricos. A começar por Cabral, o português que veio dar com os costados em praias tapuias não por conta da uma tal calmaria ou intencionalmente, mas, como se descobriu agora, porque inteiramente despirocado, pois antes de assumir o comando da esquadra nunca havia posto os pés sequer numa canoa.
Tiradentes, coitado, não bastasse ter sido o único a ser exemplado pela Coroa, diz-se agora que não tinha a menor idéia da fria em que estava se metendo. Algo assim também teria acometido o marechal Deodoro, a que hoje se atribui senilidade avançada agravada por uma enxaqueca aguda quando, momentaneamente esquecido da enorme devoção ao Imperador, gritou o “Viva a República!”. E por aí vai.
O transcurso do período, no entanto, recomenda que a reflexão se ocupe de D. Pedro I, o príncipe temperamental que proclamou a independência em um acesso de fúria às margens do rio Ipiranga (hoje um córrego canalizado e malcheiroso), em meio a um forte desarranjo intestinal.
2 – ÍCONE EUROPEU
O que pouca gente sabe é que há outra face de D. Pedro bem menos conhecida no Brasil que só agora começa a ser resgatada. "Ele se tornou um símbolo de liberdade na Europa na década de 1830", diz Isabel Vargues, professora de História da Universidade de Coimbra, em Portugal, conforme revelam Reinaldo Lopes e Rodrigo Cavalcante em “O Lado Desconhecido de D. Pedro I”. "Em meio a inúmeros monarcas conservadores que estavam de volta ao poder nesse período, Pedro IV foi considerado um estadista moderno que inaugurou um período liberal no país." (Não estranhe: "Pedro IV" é como nosso Pedro I passou a ser chamado pelos portugueses ao ser proclamado rei em sua terra natal).
E não é apenas em Portugal que a trajetória de D. Pedro I está sendo revisitada. Aqui mesmo, no Brasil, novas pesquisas e biografias estão revelando um lado fascinante do homem que conseguiu transformar a América Portuguesa em uma única nação, destino bem diferente do da América Espanhola - que se fragmentou em várias repúblicas. Isso não significa, é claro, que D. Pedro esteja sendo conduzido ao posto de guia moral da história. De fato, ele teve várias amantes e é bastante confiável a possibilidade de que ele tenha tido crises de diarréia em meio à proclamação da independência – embora não se saiba o que isto tem a ver com a moral do príncipe.
Para os brasileiros, a história de D. Pedro costuma terminar com seu retorno à Europa. Mas foi ao partir para o exílio que ele viveu uma espécie de renascimento e se tornou um ícone da liberdade na Europa. Motivos houve para que D. Pedro fosse encarado assim. O primeiro deles era sua defesa da volta de um governo constitucional à terra lusa, governada então despoticamente por seu irmão Miguel.
"Naquela época, não era comum que um monarca se empenhasse em garantir direitos constitucionais." Isso fazia com que ele fosse visto com desconfiança por seus pares da Santa Aliança - grupo de monarquias conservadoras cristãs que incluía Rússia, Áustria e Prússia.
3 – BOM DE BRIGA
Com a morte de dom João VI, o imperador se viu envolvido na sucessão do trono português. Acabou designando sua filha adolescente, dona Maria da Glória, como rainha de Portugal, combinando o casamento dela com o tio, dom Miguel, nomeado regente. Tiro pela culatra: Miguel assumiu o poder como rei absoluto de Portugal e mandou o irmão às favas.
Ao se instalar em Paris com parte da família, dom Pedro tornou-se uma das personalidades mais populares da capital francesa, sendo recebido com deferência nos elegantes bailes da corte. A França vivia uma onda liberal marcada pela ascensão do rei constitucional Luís Filipe e dom Pedro chegou a morar em um castelo real, onde recebia exilados de Portugal e de outros países que sofriam sob a mão de monarcas despóticos.
Nesse período, ele buscou apoio militar para invadir Portugal e destituir seu irmão, fazendo de sua filha a rainha de Portugal. Apesar do apoio verbal, nenhum dos reinos europeus quis se envolver oficialmente com a briga. Foi só com empréstimos pessoais (para pagar mercenários) e certo número de voluntários portugueses e franceses que dom Pedro partiu para sua derradeira aventura. Liderando um exército de 7 mil homens, ele foi para Portugal, onde teria que enfrentar dezenas de milhares de soldados comandados por dom Miguel.
Incansável e se arriscando pessoalmente nas batalhas, ele inspirou seus soldados de tal maneira que o que parecia impossível aconteceu. Em 20 de setembro de 1834, Portugal passava às mãos da nova rainha, dona Maria II. "Ela e seu filho, Pedro V, iriam inaugurar a fase moderna e constitucional da monarquia portuguesa", diz Isabel Vargues.
O ex-imperador do Brasil não viveu muito para acompanhar o governo da filha. A guerra acabara também com sua saúde, e ele morreu provavelmente de tuberculose no dia 24 de setembro de 1834. Finou-se no mesmo quarto onde ele nascera, 36 anos antes, quando o Brasil não passava de uma insignificante colônia portuguesa do outro lado do Atlântico. Pois!