'EX-MORADOR DE RUA' - Da alta à baixa sociedade, viciado, alcoólatra e mendigo

'EX-MORADOR DE RUA' - Da alta à baixa sociedade, viciado, alcoólatra e mendigo

Foto: Divulgação

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"Eu acabei com a minha família. Eu me enganava e enganava a eles dizendo que os amava. Era mentira"

 

A todo momento esbarramos em adultos e adolescentes perambulando pela cidade. A impressão que dá, ao olharmos em volta, é que a quantidade de pedintes aumentou consideravelmente em Porto Velho, embora não estejam disponíveis dados atualizados sobre o número de moradores de rua.

São viciados em entorpecentes e álcool. Pessoas que já perderam tudo. Inclusive a esperança.

A todo momento ouvimos falar sobre resgate destes cidadãos. Igrejas, instituições e parte da sociedade buscam auxilia-los com alimentos. Mas até que ponto esta ajuda é suficiente? E até que ponto é o melhor para eles?

Usuários de drogas e moradores de rua são pessoas indesejadas, das quais praticamente todo cidadão considerado de bem, se desvia como de um objeto ou de um obstáculo.

São pessoas que caminham pelas ruas enfrentando a cegueira social e  governamental, além da própria sensação de invisibilidade.

Mas eles também tem uma vida. 

O Marcos – nome fictício- 50 anos, representa, nesta entrevista, muitas vidas em uma só. Ele foi morador de rua, usou praticamente todos os tipos de drogas, foi ao inferno diversas vezes e busca atualmente se manter sóbrio e longe das drogas, numa luta diária e sem trégua.

Todos temos história de vida e demônios para enfrentar. Até mesmo pessoas consideradas invisíveis.  O Marcos, também. 

 

A história de vida de um ex morador de rua. 

 

Como era sua vida antes das substâncias quimicas?

Até os 12 anos minha vida era casa e escola

 

E como as drogas chegaram na sua vida?

Aos 12 anos comecei com bebida alcóolica em festas familiares e de amigos.Bebia cerveja que os adultos deixavam nos copos. Cada pessoa que começa a usar algum tipo de substância química, normalmente é porque não sabe lidar com as próprias emoções. No meu caso eu era muito tímido e quando bebia um copo, eu me soltava e gostava da sensação. E fui aumentando a dose e a frequência. Até que me acostumei.

 

E como você conheceu a maconha?

Foi na escola. Um colega de classe me deu um cigarro de maconha e eu gostei. Mas não precisei pagar. Ele disse que dava uma sensação bacana. Fumamos e voltamos pra sala de aula e eu me senti mais inteligente. Eu comecei a entender até matemática. E eu gostei daquilo.No fim da aula eu pedi mais para  meu colega. E ele disse que eu deveria comprar no dia seguinte. 

Minha mãe me dava dinheiro para o lanche, mas eu comprava era baseado. Fumávamos antes do hino e depois íamos para a sala de aula. Era época do regime militar, Porto Velho era uma cidade pequena, o controle era maior e nao era como hoje, que a gente encontra maconha em todos os lugares. Era difícil. Por isso, não dava pra fumar todos os dias. ..

 

E quando você começou com os furtos?

Eu tinha uns 16 anos. Sabe, eu via filmes e gostava dos bandidos. Eu torcia por eles. Achava-os inteligentes e aquilo do mocinho apanhar e não acontecer nada com ele me irritava. 

Eu tinha um amigo de infância e ele me convidou para um furto e eu aceitei. Naquela época eu jogava basquete e participava dos jogos escolares. Eu estudava a noite, treinava de manhã e trabalhava a tarde.

  Durante o dia, meu amigo ficava olhando os lugares que iríamos furtar, fazia os planejamentos e a noite após a escola, entrávamos em casas e lojas. Não tinha tanta segurança como hoje. Então era fácil. Roubávamos somente roupas e sapatos para nosso uso e com elas íamos para o Ferroviário, Ipiranga e outros points da moda na época. Eu gostava de andar bem vestido mas, o dinheiro do trabalho não era suficiente para comprar o que eu queria. Os furtos não eram para o vicio. Era pela adrenalina. Eu gostava daquilo. E até aquele período usava álcool, maconha e cola. A cola eu já usava desde os 13 anos porque era fácil de encontrar e era barata.

 

O que lhe causava a adrenalina?

O ladrão é muito técnico. Ele desenvolve habilidades para entrar e sair de uma casa ou loja, Ele tem um planejamento e isso me dava prazer. E ainda conseguia roupas e sapatos que eu gostava de usar e não podia pagar.

 

Como você foi preso?

Eu estava em uma bicicleta que havia ganhado da minha mãe. Naquele noite eu usava uma bolsa a tiracolo e levava o material escolar.  Saí da escola com 2 dois amigos e roubamos mochilas, bolsas, sapatos, roupas e sacolas de viagem em uma loja no centro e estávamos voltando pra casa tranquilos. Naquela época, o movimento de pessoas e veículos a noite era pouco. Vínhamos andando pela 7 de setembro e passou uma viatura da polícia e viu aqueles quatro rapazes e creio os policiais acharam estranho e resolveram nos abordar. Nós fugimos e na fuga a bicicleta e a mochila ficaram com meus amigos. A polícia apreendeu tudo e prendeu também os meus amigos. Eu consegui escapar. Como eu tinha 17 anos, no dia seguinte fui a delegacia acompanhado de um amigo maior de idade e levava a nota fiscal da bicicleta. O plano era denunciar o roubo da minha bicicleta. Chegando lá eu disse que tinha sido assaltado, mostrei a nota provando que a bicicleta era minha. Mas os caras que estavam comigo no roubo, ficaram sabendo que eu estava na delegacia tentando resgatar a bicicleta e me entregaram. Então eu fui preso dentro da delegacia. De vítima passei a bandido. Fiquei preso 3 dias. Minha mãe foi me buscar e me enviou pra Cacoal para morar com minha irma e fugir das amizades. E nunca mais entrei em lojas para cometer furtos.

 

E como foi em Cacoal?

Lá eu fui atrás de maconha e passei a consumir também álcool. E aí minha vida desandou. Minha irmã e meu cunhado tinham uma situação financeira muito boa e me davam dinheiro. Eu comecei a trabalhar com meu cunhado e ele me pagava bem. E eu frequentava a alta sociedade.

Sandra, é na alta sociedade onde acontecem as piores safadezas. É onde tomam muita bebida alcóolica, cheiram cocaina , onde tem muita promiscuidade, falcatruas e propinas. Sabe onde está está a bandidagem mesmo? É na alta sociedade. Nem sei se deveria dizer isso. A alta sociedade é hipócrita. Faz todo tipo de sacanagem e joga para os miseráveis. " Aquele cara lá é noiado, pilantra." É o que dizem. Mas o cara da sociedade, é um tremendo safado. E eu frequentava esta sociedade. Andava com carro muito bom, frequentava as melhores festas, me envolvi com muitas mulheres, tinha uma vida promíscua, frequentava bordéis, pagava bebidas e ostentava mesmo. Eu tinha meu salario e minha irmã me dava mais dinheiro e eu torrava quase tudo. Guardava muito pouco. Tinha entao 18 anos. E foi quando eu comecei a usar cocaína, que chamavam de " brilho". Eu bebia, cheirava e fazia muita festa.

 

Como a cocaina entrou na sua vida?

Eu cheirava muito. Todo dia. Eu podia comprar. Eu gostava de jogar futebol e uns empresários patrocinavam o time onde eu jogava. E eu era bom de bola e eles me convidavam para festas deles e lá a droga corria solta. Então passei a ter overdoses. Saía na sexta e no domingo acordava sem saber onde eu estava e como havia chegado naquele lugar. Comecei a bater carros, ter prejuízo financeiro, perder documentos e descuidar da minha aparência física.

Como minha irmã não sabia como lidar comigo, ela resolveu me mandar de volta pra Porto Velho por medo de que algo mais grave acontecesse. Peguei minhas economias e ãavisei minha mãe e nem voltei pra Porto Velho. Resolvi fazer uma viagem pelo Amazonas.

 

E como foi este período?

Em Porto Velho comprei uma grande quantidade de maconha, más so para meu uso. Eu decidi parar com a cocaina porque ela havia começado a corroer meu nariz. Escorria sangue do nada e ficava fungando o tempo todo. Um amigo de Cacoal resolveu vir comigo e pegamos o barco e fomos para o interior do Amazonas. Paramos em Manicoré. Como jogava bem futebol, o prefeito me contratou para jogar no time e me deu um quarto no hotel que era dele. Comecei a perceber que ele queria que eu ficasse lá mas, sem dinheiro. Me dava apenas fichas com direito a bebidas. Comecei a ter dificuldade de encontrar maconha, então fiquei só no álcool. Até que comecei a ficar mais na rua que no hotel. Amanhecia nas casas de mulheres que muitas vezes me roubavam e fui me afundando. E as pessoas não me aceitavam mais meu estilo de vida. Peguei um barco novamente e resolvi voltar pra Poto Velho. E vim bebendo, fumando e fazendo sexo. Ao invés de ir para casa da minha mãe , fui para o Cibec, na Praça Madeira Mamoré e fiquei por lá uma semana pedindo dinheiro na rua e prestando um ou outro serviço. Tinha medo de como minha mãe iria me receber. más uma tia me viu e contou pra ela. Minha mãe me levou pra casa e me deu uma bronca. Fiquei lá um tempo. Foi jogando bola no campo do 13 que conheci um cara que me deu um emprego. Nesta época, eu usava álcool, cola e depois comecei com a mela, que tinha recém aparecido em Porto Velho.

Jogávamos bola no fim da tarde e depois do jogo íamos para o bar e a bebida era pinga com coca cola. Aumentei a quantidade e frequência de bebida. Então era mela e bebida. Fui demitido e recebi um bom dinheiro da rescisão. Com o dinheiro, consegui me reerguer no trabalho. 

 

Como foi isso?

Diminuí o uso de mela e álcool, mas fumava maconha o dia todo, mesmo durante o trabalho. Nesta época eu havia conhecido um cara que queria abir uma empresa e não tinha o dinheiro, mas manjava do assunto. Entrei na sociedade com ele e começamos a empresa de prestação de serviços e começamos a crescer e ter uma boa rentabilidade. Me reergui e me tornei um pequeno empresário. Mas comecei novamente a ostentar. E em 1990 aumentei o uso de droga. E comecei a usar o " pitilho" que é uma mistura de tabaco e mela. Fumava muito nos fins de semana. Nesta época me casei e tive 2 filhos. E em 1994 eu voltei com tudo para as drogas. Muita pressão no trabalho, eu fugia dos problemas e as drogas me deixavam sem preocupação e rendia pouco no trabalho. Eu comecei a pegar dinheiro dos clientes e comprava tudo de droga no Trevo do Roque. Comprava muita de uma vez só porque era mais dificil de encontrar que hoje. Fumava mela todos os dias. E os clientes começaram a deixar a empresa. Eu ia para o sitio e passava os fins de semana me drogando.

 

Qual o efeito da droga?

Paranóia. A gente fica arredio, com síndrome de perseguição, assustado e sem apetite. Não dá vontade de sair pra lugar nenhum.

 

Você agredia as pessoas quando estava drogado? 

Enquanto estava drogado não. Alcoolizado sim. As pessoas pensam que todos todos aqueles que estão drogados agridem outros. Mas não é de todo verdade. Muitos quando estão sofb o efeito das substâncias, não cometem crimes. Ele comete crimes e violência quando está sob o efeito da fissura. Quando precisa de drogas. Quando quer usar e não tem dinheiro, ele faz qualquer coisa e é capaz de matar e muitos, acabam matando para conseguir o dinheiro. Más depois que usa ele tem medo de tudo. Até de barata. O barulho de um isqueiro, para quem usa pedra ou mela é assustador. Ele não faz nada quando está drogado.

 

Você disse que nao trabalhava mais, que os clientes começaram a abandonar a empresa e você passava os fins de semana no sitio se drogando. E sua familia?

Nesta época, tudo isso começou a afetar a minha família, porque eu comecei a pegar as coisas dos meus filhos para vender. Eu comprava coisas boas para eles. Mas quando aumentei a frequência das drogas, eu mudei até a marca do leite do meu filho para um que custava mais barato. Fazia compras no supermecado e depois pegava tudo e trocava por droga. E minha mulher começou a brigar por causa disso. E foi quando comecei a agredi-la fisicamente. E meus filhos viam tudo. Hoje me arrependo tanto e nem gosto de falar sobre isso. Ela tentava me impedir de sair de casa, as vezes implorava, e eu a chutava, para me desvencilhar dela e sair para buscar droga. Um dia ela sugeriu que fóssemos para o Acre onde vivia a familia dela. Era uma tentativa de me distanciar dos amigos e da droga.

 

E como foi lá? 

Cheguei em Rio Branco com uma mulher e dois filhos para morar na casa da sogra. Não consegui encontrar emprego e comecei a jogar bola com os cunhados e beber. Não ia atrás de mela, porque não tinha por lá e eu tinha planos de mudar de vida. Fui trabalhar de pedreiro um tempo depois. O cara que trabalhava comigo bebia muita pinga. Comprava dois litros de cachaça e me chamava para beber com ele. Eu ia para casa muito doido. Substitui a mela pelo álcool. Mas meus cunhados ficaram chateados com minhas bebedeiras. Um dia estava chegando em casa e vi um deles expulsando minha mulher. Meus filhos estavam chorando e nós, meu cunhado e eu, partimos para a briga. 

Então aluguei uma casinha bem simples e fiquei por lá com minha família e a dona da casa que aluguei ajudava dando algumas coisas. Foi quando surgiu uma vaga de garçon numa pizzaria e eu fui trabalhar. E lá tinha muita bebida. Alguns garçons e eu pegávamos whisky e tomávamos durante o serviço. Mas nao ficava bêbado. Foi quando um dia, enquanto servia a um cliente, dono de uma empresa, que as coisas começaram a mudar. Ele disse que percebeu que eu não era garçon e falei qual era minha profissão e ele me ofereceu emprego na empresa dele. Foi muito bom. Conversamos no dia seguinte. Ele fez um teste comigo onde eu mostrei minhas habilidades profissionais e me ofereceu um emprego com um bom salario e carro da empresa. Tudo começou a melhorar. Ele me permitia fazer trabalhos extras e isso dava uma grana boa. A vida melhorou. Comecei a ganhar dinheiro. Foi então que o outro cunhado e eu resolvemos começar uma banda de pagode e tocávamos nos fins de semana em bares e balneários. Iss por volta de 1996, quando o pagode estava em alta. Nesta época eu usava só alcool e maconha, apenas de vez em quando, que eu comprava em Porto Velho. Os músicos da banda nao gostavam de drogas, mas bebiam muito. Eu comprei um bugre que estava sempre cheio de mulher na volta dos banhos onde tocávamos. Eu adorava aquilo. Más então, a minha mulher me viu e deu um basta em tudo. Ela ja estava cansada porquê o álcool me deixa violento e eu a agredia quando estava bêbado. Ela me mandou embora e a vida começou a ficar dificil outra vez.

 

O que mudou nesta epoca?

Fui morar em um apartamento em Rio Branco e me afastei da banda. Voltei para as drogas e comecei a abandonar o trabalho.Mas eram anfetaminas.E anfetamina misturada com álcool é um veneno. Comecei a faltar no trabalho. O patrão começou a andar atrás de mim. Comecei a desviar o dinheiro para comprar drogas e mesmo assim, eu dava lucro para o patrão. Dizia que eu era bom de serviço e continuou acreditar em mim, apesar de saber das drogas. Resolveu me dar uma chance. E me mandou para fazer todo o interior de Rondônia. Passei a viajar. Parei com as anfetaminas, continuei com o álcool e voltei para a cocaina e maconha. De manhã fumava maconha, visitava os clientes, fazia o que tinha que fazer e no fim da tarde cheirava cocaina e a noite usava mela, que era o que eu gostava. O que me impede de trabalhar é a mela, porque me deixava assustado e paranóico. Eu não gostava de cocaina, apesar de usar, porque eu rangia os dentes. Eu cheguei a quebrar alguns de tanto rangê-los e já estavam fragilizados por causa do uso da mela. Eu comecei a pedir mais dinheiro e o patrão acabou me demitindo. E então voltei para Porto Velho no final de 1997.

 

E como foi esta nova fase?

Eu me vi sem a família, sem trabalho, sem nada. E consumia cada vez mais mela. Desandei mesmo.Fui viver na rua. Dormia nas arquibancadas do campo do treze. Alí era a podridão mesmo. Eu cheirava gasolina, tíner, fumava mela e pedia dinheiro e comida na rua. Ficava por ali com uns 20 pedintes. Isso durou quase dois anos.

 

E como é viver na rua?

É humilhante,desconfortável e perigoso porque a gente convive com todo tipo de gente incluindo fugitivos de penitenciárias, homicidas que dormem com armas e vendedor de drogas. De vez em quando eu ia na casa da minha mãe para emociona-la e pegar alguma coisa dela. Minha mãe sempre me amou e quando me via barbudo, cabeludo, e todo sujo, ela se emocionava e ficava na minha mão. Tudo o que eu pedia ela dava. O dependente de drogas é manipulador. Quando ele quer alguma coisa, ele consegue porque encontra um meio de manipular as pessoas e se dar bem. Eu estou falando isso como ex usuário e hoje eu tenho o lado técnico e prático sobre isso.

 

Como é o mundo visto por um morador de rua?

O morador de rua é o lixo da sociedade. Ele vê os carros passando, as familias e ele está alí, no lixo. Ele é a escória da sociedade e eu me sentia assim. Mas tem o lado bom: a liberdade e a falta de compromisso. A gente dorme quando quer. E vou te falar uma verdade: algumas igrejas e pessoas da sociedade tornam a rua confortável. A ajuda ao morador de rua deve vir em forma de resgate e não em mantê-lo nas ruas.

 

E como a sociedade e igrejas mantêm os moradores de rua na rua?

Dando café da manha, almoço, cobertor. Como eu vou sair de um lugar onde eu tenho tudo isso? Todas as noites passam irmãos da igreja dando café com pão, sopa, roupa e cobertor.

 

E qual seria a forma correta de tira-los de lá?

Negando ajuda e deixando-o na merda. Deixando-o perceber que ele precisa sair de lá.

 

Você como ex morador de rua está me dizendo que a forma correta de tira-los de lá é negando ajuda?

Isso mesmo. Não dando nada. Porque dando, sustenta eles. Por quê eles ficam lá? Porque alguém está sustentando eles, Sandra. Não é o governo que os sustentam. É a sociedade.

 

E quem não quer sair da rua?

Todos querem sair. Mas não tem pra onde ir. Quando se fala em instituição, não se fala em tratamento. Se fala em internação. Para o dependente quimico, ouvir sobre internação é o mesmo que falar que ele vai pra cadeia. Para a prisão.

 

E qual a forma correta de falar? Porque o para tratamento, a internação é necessária.

É uma questão de mudar a palavra e fazê-lo perceber que ele está doente. A sociedade diz que o dependente é um sacana, um canalha. É também. Mas é sobretudo, uma pessoa doente fisicamente, espiritualmente e emocionalmente. Você receberia na sua casa um morador de rua? Creio que nao. Ninguém quer receber, mas muitos dão 5 Reais para se livrarem dele. Eu entrei todo fedorento e muitas vezes em lugares chiques porque sabia que iriam me dar alguma coisa pra sair logo do lugar.Quem dá, estará ajudando a sustentar o vicio dele. E a noite vem os irmãos e dão comida. Ele está alimentado e depois disso, vai beber. Ele nao pede dinheiro pra comer. É para beber ou se drogar, porque comida ele tem. Quando eu morava na rua eu sabia todos os lugares onde distribuiam comida: Na rodoviária, no campo do treze e no centro espírita Irmão Jacó todas as sextas, sábados e domingos e anda faziam a barba, cortavam os cabelos e davam roupas. É uma coisa boa para mantê-los na rua. Para você ter uma ideia, uma familia que tenta se manter com um salário mínimo, tem uma alimentação bem pior do que um morador de rua. Nem todo mundo que trabalha come em churrascaria, por exemplo. Elas doam marmitas diariamente. Todo mundo se emociona com alguém pedindo comida. Não falta alimentos para morador de rua. Vai um pai de familia pedir dinheiro para ver se dão. Deixa acabar a gasolina da minha moto e eu pedir 10 reais para o combustível para ver se alguém vai dar.

 

Talvez a sociedade se sinta egoísta ao negar ajuda.

Na verdade, muitos ajudam por acharem que é bonito, para aparecerem e dizerem que estão fazendo a obra de Deus. Mas manter o morador na rua é uma ideia errada de se fazer a obra de Deus.

 

Então, como devem agir, tanto a sociedade quanto o governo no resgate destas pessoas?

Ninguém quer se internar. Deveria ter um outro meio de tira-los. Esta pergunta eu vou responder de outra forma. O governo sabe o meio de tira-los. Há dinheiro para a saúde e também muitos meios de desvia-lo. Quanto de dinheiro é destinado para a recuperação de dependentes químicos? E onde estão as clinicas para recupera-los? O governo nao faz nada. O que ele faz para ajudar os moradores de rua? Desviam o dinheiro destinado a saúde e chamam estas pessoas de miseráveis. E a sociedade, para evitar que roubem a casa dela, prefere dar dinheiro. " aquele cara é legal. Eu dou dinheiro pra ele e ele vigia a minha casa". Quantas vezes você já ouviu isso? Inúmeras vezes fizeram isso comigo.

 

E quando foi que você decidiu sair da rua?

Eu decidi me internar voluntariamente porque não aguentava mais viver na rua. Procurei o refúgio Canaã na BR e comecei trabalhar lá, até virar obreiro chefe e ajudava nos afazeres.

No Refúgio aconteceu uma coisa muito boa. Foi lá que tive minha primeira experiência com Deus. Eu passei a ver que Deus realmente não é místico. Ele é real. Muitas situações aconteceram comigo no Refúgio que só Deus mesmo poderia ter feito por mim.Fique 1 ano lá. O tempo permitido.

Depois fui para a casa da minha mãe. Pouco tempo depois, recebi o convite de uma igreja para pregar o evangelho, por ter conhecimento bíblico no tempo que fiquei no Refúgio em recuperação.

Fazia cultos em praças, supermercados e outros locais com uma caixa de som e ficava pregando. Talvez você tenha até me visto por aí. Fiquei la até começarem as cobranças.

Eu saí da rua e achava que tinha que fazer um trabalho com aqueles que eram guais a mim, mas meu líder discordava.. E eu era bom. Lotava a igreja porque eu era ex morador de rua e chamava a ç. Eu estava há 2 anos sóbrio. Mas Com as cobranças eu comecei a sair do prumo.

 

O que aconteceu em seguida?

Um dia, muito aborrecido com as cobranças, perdi a calma e mandei o pastor a merda. Saí de lá com minhas roupas alinhadas, sapatos muito bem engraxados e fui para o campo do treze. Vendi minha bíblia, minhas roupas e sapatos e saí de lá só de cueca e voltei para a rua. Isso foi em 2002.

 

Você perdeu todo o tratamento e todo o esforço aplicado durante 2 anos? Mas por quê?

 

Estraguei tudo por não saber lidar com minhas emoções. O que detona o dependente químico é não saber lidar com elas. Voltei a cheirar e mendigar.

Na rua não faltam drogas, álcool e nem dinheiro. Aparece. Alguém sempre dá. E me drogava com o que aparecesse. Mas eu fui ficando doente. Desenvolvi hiper tiroidismo e também fui preso usando drogas, após quase um ano nas ruas. O juiz me deu uma pena de seis meses dividida em 3 para tratamento na Instituição Apatox e 3 para trabalhos comunitários. Eu não quis. Mas ele foi taxativo: ou iria para o tratamento ou seria preso. Então eu fui. E estava doente. Cumpri os seis meses e continuei lá como um dos conselheiros mesmo depois de ter terminado minha pena. Comecei a ter um trabalho remunerado e colaborava na instituição, assim como muitos outros. Morava na casa da minha mãe, me tratei e até engordei. Eu pesava 50 kgs e estava muito debilitado. E mais tarde, eu tive um grave problema de saúde. A instituição me deu todo o apoio, fiz tratamento fora do estado e recuperei a saúde mas,embora tenha ficado com sequelas.

 

Quanto tempo durou?

Todo o tratamento, incluindo o de saúde, durou 4 anos. Estava sóbrio, longe das drogas e havia me curado da doença. Nesta época conheci uma pessoa, que hoje é minha esposa e ela me devolveu o prazer de viver.

Em 2006, em uma festa, eu caí em tentação e tomei uma garrafa de vinho, cheirei todas e acordei sem saber onde estava. Minha namorada estava de férias na casa da família dela no nordeste e quando soube, veio correndo em meu socorro. De repente, tudo de novo. Ela me deu todo o apoio e sugeriu que comprássemos um terreno e fizéssemos uma casa. Ela teve muita paciência. Ela dizia que não iria me abandonar e que eu iria sair de tudo aquilo. Fizemos um barraquinho no terreno onde compramos e eu voltei a ficar agressivo por causa do álcool e comecei a agredi-la. Os anos seguintes foram difíceis, más ela permaneceu ao meu lado.

Finalmente, em 2013, foi quando eu me dei conta do que estava fazendo e resolvi pedir socorro à instituição, que me aceitou e hoje eu estou em recuperação.

 

Você teve muitas recaídas. Há possibilidade disso acontecer novamente?

Sim, há. mas o que me mantêm é a minha vontade de estar  sóbrio e longe das drogas. Hoje eu continuo vivendo com minha namorada e e estou há dois anos sóbrio e me esforço para ser um bom marido e uma boa pessoa.

 

Você acredita em você mesmo?

Não. Não acredito tanto em mim. Mas eu acredito em um Deus que pode me dar a capacidade de vencer as minhas emoções e meus sentimentos. Eu aprendi a lidar com minhas emoções. O tratamento na instituição é voltado também para o lado psicológico da doença. A doença é progressiva, incurável e fatal. Ela abrange a área física, psicológica e espiritual do ser humano.  Quando acaba o tratamento, inicia a recuperação e isso é a vida toda. É preciso ficar claro que dependência química não é defeito de caráter. É uma doença.

 

Então são as emoções que levam uma pessoa para as drogas?

Sim. Nossa intolerância e falta de habilidade para lidar com críticas e emoções como a alegria, tristeza, frustração, com nossa arrogância, orgulho e prepotência. Tudo isso nos leva para as drogas. Muitos de nós, quando somos chamados a atenção, seja pela esposa, namorada, pais ou patrão, ficamos extremamente irritados e essa irritabilidade pode nos levar para o mundo das drogas, porque é um alívio emocional.

 

Agora em recuperação, quando você olha a sua vida daqui para a frente, o que você vê?

Eu vivo só por hoje. Eu não olho minha vida amanhã. Porque cada dia é uma batalha diferente. E o amanhã ainda nem chegou. Agora estou aqui com você.

 

E o que você espera do hoje?

Ficar sóbrio e não me drogar. Aconteça o que acontecer eu não vou me drogar. É uma batalha forte.

 

Qual a maior lição que você tirou de tudo isso?

Que eu não valho nada. Eu sou manipular, eu sou prepotente, eu sou mentiroso, eu sou orgulhoso, sou ladrão, pelo menos fui. Eu não valho nada.

 

Mas você não acha que poderá valer? Eu fiquei chocada com sua afirmação.

Sandra, não é falando que vamos começar a valer alguma coisa. É tendo atitudes responsáveis. Eu acabei com a minha família. Eu me enganava e enganava a eles dizendo que os amava. Isso era mentira. Quem ama não rouba, não bate, não prejudica, não manipula e não destrói. Então, eu nao amava. Hoje, eu não digo que amo minha família. Hoje eu faço as coisas para que vejam que eu a amo. Meus filhos se distanciaram de mim, inclusive geograficamente, mas eu procuro estar presente e busco resgatar a relação e a confiança deles. Estão adultos e tem a vida deles agora, mas eles não são próximos porque não confiam em mim. E eles tem razão. Ninguém, além da minha esposa, confia em mim. Sabe porquê? Porque ninguém confia em dependente químico.

 

Como você pretende resgatar a confiança dos filhos e de outras pessoas?

Tomando atitudes responsáveis. Como por exemplo, ser honesto comigo mesmo e com eles, trabalhar, estar ao lado deles e da minha esposa que ficou ao meu lado em momentos difíceis, dormir e acordar com ela, cuidar dela, estar presente e cuidar da minha mãe. Eu não digo " mamãe, eu te amo", porque quando eu falava isso, eu metia a mão no bolso dela e pegava seu dinheiro. Hoje eu vou lá e ofereço um dinheirinho para ajuda-la a comprar suas coisas. Ela diz que não precisa e eu dou do mesmo jeito. Eu estou, todos os dias, procurando ter atitudes responsáveis. Antes quando acontecia alguma coisa na minha família, ninguém me procurava. Eu era um noiado. Pediam para não me chamarem porque eu iria atrapalhar. Hoje eles me chamam e para eles, eu comecei a valer alguma coisa. Mas o monstro continua dentro de mim. A doença da dependência não tem cura. Ela pode ser controlada, como a diabete. E isso só é  possível, quando aprendemos a controlar as emoções.

 

Você disse que é manipulador. Você me manipulou ou mentiu para mim durante esta conversa?

Não. não. E não há como você saber se é verdade ou não. Porém, eu não menti e nem lhe manipulei. Eu fui verdadeiro porque eu acredito que esta entrevista poderá ajudar um dependente químico.

 

De que maneira?

O que quero que saibam é que muitos de nós, tem um medo muito grande de tratamento e de ir para uma instituição e acha isso difícil demais. O mais difícil é estar em recuperação. Porque em tratamento o cara tem pessoas para ajudar, para dar comida na boca, cuidar dos ferimentos. Já na fase da recuperação, é, praticamente, só ele e Deus. Quase ninguém irá perguntar “, você precisa de alguma coisa?” Não. Poucos perguntam. E muitos outros já vem logo te acusando. " Tú é um noiado, maconheiro e irresponsavel". A mulher vai xingar, reclamar que o cara não está ajudando direito e chama-lo de irresponsável. E isso tudo é verdade, mas  para um dependente químico é como um tapa na cara dele. E ele corre para se aliviar destas emoções. O dependente químico não enfrenta problemas, ele não quer saber de problemas, ele não quer resolver nada. Ele ainda não aprendeu a lidar com as emoções. O dependente químico vive do próprio egoismo. E se ele se der conta disso, ele irá  procurar ajuda. Como eu fiz. Mas  perceber tudo isso, é difícil. 

 

Qual a mensagem que você deixa para as pessoas que ajudam moradores de rua e para os dependentes químicos?

Para as pessoas que realmente querem ajudar um morador de rua não dêem dinheiro e não sustentem o vicio dele, porque se ninguém sustentar, ele vai se enfraquecer e poderá decidir  procurar outro tipo de ajuda. Pedir dinheiro é lucrativo. Uma pedra custa em media 10 reais e alguns fumam de 10 a 20 por dia. São 300 Reais por dia. Você ganha 300 Reais por dia? Alguém vai te dar se você não trabalhar? Onde o dependente químico consegue todo este dinheiro? Alguém dá. As pessoas dão achando que estão fazendo o bem, mas não estão. 

Para os usuários eu quero dizer que vocês são enganados pela própria manipulação. Há uma manipulação em nós mesmos. Por um problema ou dificuldade, você ainda ainda descobriu isso  e só vai saber se fizer um tratamento e descobrir as razões que o levaram às drogas. No meu caso, eu identifiquei que foi a minha timidez. 

Procurem ajuda para aprenderem a lidar com suas dificuldades emocionais e de cara limpa. Incluindo aqueles que tem sempre uma razão para beber. Bebe para comemorar ou para chorar. Por euforia. Flamengo ganhou, vai beber. Flamengo perdeu, vai beber. Porque? Porque tem uma emoção e o álcool acalma tudo isso. Então tenham cuidado e busquem ajuda para  aprenderem a lidar com as suas emoções. 

 

Preciso perguntar se é você é contra ou a favor da redução da maioridade penal. 

Sou contra. A sociedade acredita que o menor não paga pelos crimes, mas paga. Muitos  não se informam sobre o que acontece, preferem ver uma novela do que ouvir uma entrevista com um magistrado, por exemplo ou um programa educativo. Este tema esta sendo debatido o tempo todo na televisão. Mas não assistem. O menor paga pelos crimes que cometem e joga-los em uma  penitenciária com adultos é deixa-los em uma escola de bandidos para formar mais bandidos.  Ou você acha que lá é possível reabilitar alguém? O cara sai daqui sabendo roubar uma casa e volta fazendo mil coisas melhores. A maioria dos crimes é cometido por adultos e isso prova que o problema é ele. O sistema prisional não reabilita nem mesmo os menores. As instituições sim. Ninguém quer ir para o presidio. La eles sabem que serão estuprados, espancados e terão que sobreviver na base do mata ou morre. Isso tudo é bonito em programa de televisão. Você já foi em um presidio?. o Crime manda aqui fora e o governo está na mão dele. O governo não tem autoridade e os outros políticos menos ainda, porque a maioria é bandido também.

 

 

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